Pular para o conteúdo principal

Saudação a Sydney Limeira Sanches, meu amigo





        Amanhecia hoje quando, ainda de olhos fechados, comecei a fazer um exercício de memória. E minha memória é péssima, devo dizer. As lembranças surgem em cenas soltas e passam desconexas. 

Pilotis da PUC, Ala Kennedy. Março de 1982. Por acaso, nos encontramos sentados lado a lado na última fileira de cadeiras, Sydney e eu, dois desconhecidos, durante a primeira aula de Introdução ao Direito. E assim, lado a lado, seria durante os cinco anos seguintes, até a formatura.

Depois de oito meses morando em Copacabana e sem conhecer ninguém, Sydney foi o primeiro entre os cariocas que me disse: -Passa lá em casa. 

        A diferença foi que me deu o endereço. Sydney é tijucano. 

        Com a TV na garagem e entre os seus amigos de infância, o Reco, o Dado, o Osvaldo e o Girino, na calçada pintada de verde-amarelo, assisti o primeiro jogo da Copa de 82.

Brisa se chamava a cockney spaniel da família. O pai, Dr. Sydney, também advogado, dona Joecy, sua mãe, Shirley e Sheyla, suas irmãs, todos com o mesmo idêntico sorriso, me trataram como se eu fosse de sempre.

Nós não éramos especialmente brilhantes no estudo de Direito como outros colegas de turma, em especial estes amigos queridos que hoje nos acompanham, Pedro Paulo Cristóforo, Gilberto Ramos, Marcelo Trindade e, o nosso orador, Régis Fichtner, mas cumprimos com as nossas obrigações universitárias sem atrasos e ainda ajudamos o Big Fred e o Broca a passar em várias cadeiras. Não era fácil, o Broca escrevia em surfês.

Com o Matias, fizemos o estágio no mesmo pequeno escritório de advocacia perto da Calendária. Minha simpatia pelo Fluminense vem de acompanhar com o Sydney a campanha de Romerito, Assis e Washington em uma nuvem de pó de arroz no Maracanã, em 84.

        Ambidestro, Sydney escreve com o punho direito, mas chuta com a esquerda. Tenho clara a imagem daquela semifinal que perdemos no torneio de futebol universitário, seu chute forte de trivela. Foi nesse jogo que o nosso ponta-direita, o Claudinho, deslocou o próprio ombro ao cobrar um lateral e criou o contra-ataque decisivo para o time da engenharia. Logo de formados, esse mesmo colega perna-de-pau, Cláudio Serzedello Correa, compensaria (para mim, ao menos) o lance desastroso conduzindo Sydney ao seu primeiro trabalho como advogado.

Subíamos a serra de Fuca rumo ao Quitandinha e fomos parados por uma viatura policial. Sydney tinha os olhos marejados e não havia forma de convencer ao sargento que ele vinha emocionado pelo sofrimento na seca do nordeste. Era sempre assim, o Sydney me deixava a impressão de estar na presença de alguém da linhagem do Betinho, o irmão do Henfil,  com algo da empatia e do carisma do Darcy Ribeiro.

Viajamos para o Norte, pegando carona, dormindo em Casas de Estudantes. Visitou-me aqui no pampa em um inverno branco, gelado, e em Londres quando eu quis que ficasse dividindo o meu quarto e sala e vivendo de bicos comigo.

Sua voz baixa me contando como conheceu a Leila, sua futura esposa. Que destinou o gabinete principal do seu escritório ao seu pai e a surpresa dele ao entrar para conhecer as salas e dar com seu próprio nome na placa. O Cohiba que fumamos na noite em que nasceu Antônio Pedro.

Sei que meu depoimento distoa do que se espera em uma cerimônia como esta. É pessoal demais. Mas como ser diferente? Desde o primeiro momento, Sydney Limeira Sanches foi um amigo íntimo, a constante comprovação de que a bondade existe em maior grandeza. Uma pessoa completa em si. Que, mesmo verde, saindo da adolescência, parecia ter nascido pronta. Nenhuma realização profissional ou láurea seria capaz de acrescer ao que ele é porque ele sempre foi.

Nós passamos anos, décadas até, sem contato. Um dia, recebi de presente uma caixa de CDs com a obra completa do Vinícius. Eu sabia que Sydney era uma referência em direito autoral no Brasil e que tinha construído um vasto currículo acadêmico. Há algum tempo dei como uma foto sua montado em um puro-sangue chamado Vernon, em pleno salto sobre um oxer hípico. Depois, o tenho eleito presidente do Instituto de Advogados Brasileiros e hoje recebendo o honoris causa da prestigiosa Universidade Santa Úrsula.

Traz uma satisfação profunda saber que um homem tão luminoso em um mundo como o nosso recebe o reconhecimento que merece. Diz bem do Rio de Janeiro, diz bem do Brasil.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mar Becker

  De Mar Becker sei que nasceu em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e que é gêmea de Marieli Becker. Sua mãe, Meiri, costurava em casa e sua avó, Maria Manoela, foi vítima de uma tragédia não revelada às netas crianças. Que estudou filosofia e hoje mora em São Paulo, na reserva de Guarapiranga, com Domênico, seu marido. Sei que é leitora voraz, que tem bom gosto poético e que é culta, que gosta de cavalos, cães, gatos, Zitarrosa, de música nativista e de Glen Gould. Que toca violão e canta, gauchinha, com voz meiga, quase infantil. Sei outras coisas que, como estas, importam pouco, são letra fria diante do que ela escreve e da forma como escreve os poemas de "A mulher submersa", seu livro de estreia publicado pela editora Urutau.  A primeira impressão de leitura é de que esses poemas foram impelidos por instinto de urgente sobrevivência. Apesar da urgência, há neles lenta maturação e extremo refinamento. A leitura nos deixa quietos, maravilhados muitas vezes, enternecidos e ...

4 sonetos

Um regente do acaso para Raul Sarasola O encarte da exposição traz o artista empilhando discos de pedra lisa -gravity meditation não dualista- em três fotografias sem camisa (A pilha suspensa em ésse, o desnível, repele a queda mas captura a ameaça Aproxima o possível do impossível alinhando o centro de cada massa) Vem do caos o seu olhar polifacético Raul se entrega ao piche, ao ferro, à tela e, absorto, do escombro tira algo poético Quando plena, a ausência age, rege o acaso A face surge sempre com atraso É o abstrato sumindo que a torna bela Sant’Ana, 19 de junho 2016 Fotos em exibição Há uma série oculta em cada p&b A Chirca, O Miniabismo, O Véu, A Crosta Essa falésia é e não é uma ostra O longe vira perto, o vesgo vê Seria o lírio um pássaro pousado? Onde a sombra muda o ponto de vista outro real, que o filme não registra, some ao passar apenas vislumbrado Um campo, o céu, tão remota a brancura O nanquim de um salso no vento ao fundo O atemporal que entre as rajadas dura E pre...

"Exílio. O poema quântico". por Juva Batella

Os poemas que compõem o grande poema que se lê em Exílio não são narrativos; funcionam, antes, como fragmentos, e não como etapas ou camadas. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é, portanto, do tipo retórica ou esparramada, e compõe-se num espaço textual tão conciso, que o leitor — não tendo para onde fazer correrem os olhos — deve permanecer onde está, com o olhar virado para si e tentando, dentro de si, encontrar, neste espaço privado, uma equivalência pessoal para o jogo de espelhos de outro espaço privado: o espaço do poeta, ou, antes, do olhar do poeta sobre o mundo, sobre o seu fazer poético e ainda sobre o seu próprio olhar acerca deste fazer. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é fácil de se ler às pressas. Lendo-a às pressas, ela nos escapa. Ler poesia, em geral, não é fácil. É, antes, um movimento que caminha contrário à automatização que se ganha com o tempo e com os tempos dedicados à leitura de prosa — este correr de olhos em que saltamos de uma palavra à outra, rec...