Passei os últimos dias navegando erraticamente pelo volume "Oriente", de Thomaz Albornoz Neves. São 771 páginas, encadernadas em capa dura, em edição rigorosamente do autor. Quero dizer: o trabalho de seleção dos textos, a tradução, as anotações, a chancela editorial, o projeto gráfico e a diagramação, tudo.
Não vou longe nestes comentários. Esse mar de poesia é amplo, a gente tem de passar entre Cila e Caríbdis várias vezes, tem de interpretar, sem ouvir, as reações desse Ulisses ao contínuo canto das sereias orientais e, por fim, não poucas vezes, na companhia imaginária dos leitores presentes e futuros, regalar-se no banquete, nos termos em que Carlos Alberto Nunes traduziu o momento da confraternização sagrada: “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas”.
Não li de enfiada, confesso. Um livro como esse é um companheiro de muitos anos. A gente mergulha, sai, respira, sente saudade e volta para nova imersão, exercício ou banho rápido. Outras vezes apenas para buscar frescor de alívio. Ou ainda sal que conserve, pela revisita, a divagação, e que tempere, tornando menos angustiante o engolir diário de palavras toscas.
Li um pedaço aqui, outro ali, conhecendo o que ignorava e reconhecendo o já visto. Às vezes, ainda, não reconhecendo ou mesmo desconhecendo o que já conhecia.
São muitos os efeitos especulares nesse caso, as miragens, as refrações.
A gente se afeiçoa a uma versão e depois, mesmo que se depare com outra, que pode até ser melhor, a primeira não se apaga. Foi assim com o Tao Te King. Li pela primeira vez esse texto ainda na primeira juventude, num dos dois volumes de “A sabedoria da China e da Índia”, de Lin Yu Tang. Ele o traduziu do chinês para o inglês. E dessa língua foi traduzido para o português. Mas não foi essa a versão que se imprimiu no meu espírito, mas uma que li num período em que visava não diretamente a poesia, mas buscava um caminho correto, ou um caminho de libertação. A versão do Thomaz é mais fluida, mais bonita. Mas a cada passo, como um véu que distorce, o que eu tinha fixado na memória impedia a completa fruição do novo.
Outra coisa sucedeu com os haikais. Conheço vários que estão reunidos no volume. Thomaz não os recolheu da fonte mais generosa, que são os livros do Blyth. Como confessa, propositalmente manteve-se fora do alcance desse autor, cujas traduções e interpretações moldaram em grande parte o que foi o haikai no mundo de língua inglesa. Recorreu a outras fontes.
Confesso que em vários momentos suspeitei de que um dado haikai era outro, digamos assim. Por exemplo: um haikai que eu mesmo traduzi me aparecia sob uma vestimenta que exigia que o despisse para ver-lhe a matéria íntima e o reconhecesse. Noutros casos, devo ter passado rente a algum velho conhecido sem sequer o cumprimentar. Por outro lado, havia vários convivas nessa festa que eu nunca tinha encontrado (eu creio) e me foram ali apresentados.
Esse efeito deriva do princípio esposado pelo tradutor. E de alguma coisa mais, que logo direi.
Quanto ao princípio, vejamos o que ele escreve no posfácio:
“O autor desconhece os originais, nunca esteve nos lugares em que foram escritos nem manteve contato com especialistas para aprofundar seu entendimento. Preferiu conservar suas dúvidas e seguir a intuição, selo de seu diletantismo, no lugar de maquiar um domínio da matéria que não possui. Por serem baseadas em traduções, as versões não possuem valor filológico. São ecos do eco anterior distantes da voz que os causou.”
Não seria talvez despropositado aproximar essa última frase de um bem conhecido verso das correspondências de Baudelaire. Porque na floresta de ideogramas em que o poeta gaúcho se move, são os ecos que importam. E não necessariamente ou não apenas os ecos da voz original, digo, do chinês ou do japonês que escreveu o texto a traduzir. Mas os ecos de uma voz anterior, que ressoa sob a forma de intuição. O diletantismo se configura, eu penso, como estratégia de preservação dessa busca.
Logo adiante, seu trabalho de tradutor é descrito como “prática de falsário”, o que não é uma boa definição. Com essa modéstia irônica, o que se aponta é o conjunto de atividades que permite a refratada aproximação (e ao mesmo tempo reafirma o distanciamento) do tradutor em relação ao original intangível e, ainda mais, talvez, ao original daquele original – por assim dizer.
O posfácio, aliás, se intitula “A tradução no escuro”, o que não é um título exato, uma vez que essas traduções se fazem a uma luz particular, difícil, mas intensa. É, porém, no escuro, no sentido em que a iluminação oferecida pela filologia (e mesmo pelo estudo básico da língua) é cuidadosamente desprezada.
É que seu interesse está mais além, como se vê por aqui: “de tudo, em cada caso, ao tradutor resta o contato direto com o que é intraduzível”. Estaria em erro, entretanto, quem lesse a frase como resignação ao fracasso da tradução. Pelo contrário, o que aí está é uma celebração, o desvelamento do fim da atividade e da origem desse livro, como dos outros do autor. Também da poesia se poderia dizer isso, com modalizações; mas seria arriscado e não viria aqui ao caso. A menos que eu enveredasse pelos demais livros do Thomaz. Da tradução, sim, como ele mesmo disse: o contato direto com o que não pode ser vertido em palavras. No universo abarcado pelo título do livro não é também isso o que se denomina iluminação?
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