Um regente do acaso
para Raul Sarasola
O encarte da exposição traz o artista
empilhando discos de pedra lisa
-gravity meditation não dualista-
em três fotografias sem camisa
(A pilha suspensa em ésse, o desnível,
repele a queda mas captura a ameaça
Aproxima o possível do impossível
alinhando o centro de cada massa)
Vem do caos o seu olhar polifacético
Raul se entrega ao piche, ao ferro, à tela
e, absorto, do escombro tira algo poético
Quando plena, a ausência age, rege o acaso
A face surge sempre com atraso
É o abstrato sumindo que a torna bela
Sant’Ana, 19 de junho 2016
Fotos em exibição
Há uma série oculta em cada p&b
A Chirca, O Miniabismo, O Véu, A Crosta
Essa falésia é e não é uma ostra
O longe vira perto, o vesgo vê
Seria o lírio um pássaro pousado?
Onde a sombra muda o ponto de vista
outro real, que o filme não registra,
some ao passar apenas vislumbrado
Um campo, o céu, tão remota a brancura
O nanquim de um salso no vento ao fundo
O atemporal que entre as rajadas dura
E pressentida a cada enquadramento
a transparência que atravessa o mundo
o seu vazio vazando em sentimento
A morte do pai
A cada dia o pai segue partindo
Folheio, o raminho cai do livro, plana
Sobe um ar seco de sândalo antigo
contra as frestas de luz da veneziana
Nesta biblioteca o vô foi velado
Aqui o pai se curva e lhe beija a testa
O dente-de-leão caindo abre um hiato
envolve as mortes numa paz bissexta
E assim uma minúcia, uma cortesia
me traz quem era, como havia vivido
Ou sou só eu que em tudo sinto a poesia?
E junto as mortes e me vejo morto
numa redoma de sândalo antigo
E escrevo quieto, entregue, sem esforço
Em quarentena
Bombeiros incensam o quarteirão
Névoa de alvejante, a rua solitária
Para uns devemos sair, para outros, não
Já em Rivera há ajuda comunitária
Ronda o rumor, nada vem de boa fonte
O mal é como o dom, não vaga, aflora
No campo dizem que o anel do horizonte
mantém a peste do lado de fora
Traz a quarentena um novo silêncio
de onde ressurge um tempo muito antigo
O instante é lento, outro mais intenso
Não saber quem vive desperta o bem
Da realidade só resta comigo
este amor por tudo, nada, ninguém
Sant’Ana, 27 de março, 2020
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