Pular para o conteúdo principal

Explicações ao Santiago

 



Ontem, para fazer o convite de assistir um filme juntos, perguntaste se eu estava trabalhando, porque é o que tua mãe diz sobre as horas que passo na biblioteca. Te disse que o meu trabalho era cuidar da estância e que ela chama de trabalho para vocês entenderem que o pai de vocês não é diferente do pai do Álvaro que tem uma loja ou dos outros colegas da escola cujos pais tem empregos. Eu escolhi trabalhar em campanha porque é uma forma de não ter horários fixos durante o meu dia.

– E poder ficar aqui como eu fico no quarto jogando meu Play...

– Não, filho, não é bem um Playstation. O videogame, depois de horas de jogo, não deixa nada, enquanto aqui fica o que eu penso, porque escrevo meus pensamentos no papel (ou no word). E não, não dá dinheiro. E sim, se fossemos viver da venda dos livros não viveríamos.

– Então qual a razão, pai, de passar tanto tempo lendo e escrevendo se não serve para nada.

– É um ofício.

E lá fomos nós procurar no dicionário on line o significado e os vários sinônimos da palavra. O que mais confundiu que esclareceu. Vamos ver, filho, se faço melhor agora.

Eu comecei a escrever quase na idade do teu irmão, mais ou menos na mesma época que conheci a tua mãe. A primeira vez que eu vi a tua mãe era começo do verão e ela vinha subindo a Rua dos Andradas com os cadernos contra o peito. Vestia o uniforme do Colégio das freiras, o mesmo Teresiano que te matriculaste para o ano que vem. Eu senti uma falta de ar na boca do estômago igual a quando eu vi a Gatúbela, a Mulher-gato, pela primeira vez na televisão. O ar ficou salgado de repente. Ao voltar para casa, em vez de fazer meu dever, tentei explicar para mim mesmo aquela sensação estranha provocada por alguém desconhecido. Foi assim que começou. Então, depois de um tempo – eu já estava de namoro com a tua mãe – arrumei coragem e mostrei ao meu pai algumas páginas que eu tinha passado a limpo num caderno novo, atado com fitas de seda verde, comprado lá na Casa América, aquela do Papai Noel gigante na vitrine. Sabe, filho, até esse dia, eu nunca tinha conversado com meu pai sobre mim e se eu não tivesse escrito aqueles poemas para a minha namorada, não sei o que teria nos aproximado. Teu avô era muito mais fechado com os filhos do que foi com os netos. Eu só tinha mostrado aqueles primeiros versos para a Gracielita e pelo jeito ela tinha gostado que alguém usasse as palavras da forma como eu usava, quero dizer, me parecia que ela gostava de ler sobre o que eu vivia com ela. Por escrito parecia mais profundo o sentimento. Mas enfim, o fato é que quando eu mostrei o caderno, meu pai abriu a gaveta da sua escrivaninha de médico (seu modesto consultório era aqui nesta mesma casa e ele atendia na pecinha que hoje é o nosso hall de entrada) e retirou um maço de folhas de receitas soltas com seus poemas nelas. Não lembro mais de nada do que eu havia escrito, mas lembro dos poemas dele. Sonetos. “Eu amo a chuva e as gordas suadas \ eu amos as vesgas e a madeira torta”... Fiquei encantado com a ideia do meu pai e uma gorda suada e em ser bonito um pau torto. A partir daquele dia, nós descobrimos que tínhamos algo em comum fora da nossa relação de pai e filho. Ele me passava livros de poesia, eu lia e voltava para conversar sobre os poemas e os poetas. Escrever, Santiago, não só fazia a minha namorada pensar que eu era inteligente, mas me aproximou do meu pai de uma maneira nova. Enquanto conversávamos sobre leituras ele deixava de ser o pai e eu de ser o filho, nós éramos iguais. E mais, eu sempre conseguia dinheiro com ele quando queria comprar livros e quando eu quis publicar minha primeira reunião de poesia, o pai bancou a edição, aqui na gráfica da esquina, onde hoje está a veterinária Criação. Esse livro, chamou-se “Renée” e nele estão não só todos os poemas que escrevi para a tua mãe durante os primeiros anos de namoro, estão também todas estas coisas que eu vivi com meu pai e tua mãe e o que eu sentia naquela época, como nós éramos então. Naquele livro, e nos outros que vieram depois dele, está parte da minha vida e das pessoas que viveram comigo. Teu avô também publicou aqueles versos, não o das gordas suadas, mas os outros, em vários livros através da vida. Anos mais tarde, foi a vez da tua avó, Celina, publicar dois livros com contos e poemas. Mas essa é outra bonita história que fica para depois. O que aconteceu comigo foi que quanto mais eu lia mais eu queria ler. E por ler, quero dizer, descobrir o que os outros pensam, porque eles escrevem o que escrevem, como ele vivem as suas vidas, o que eles aprenderam. De modo que eu também na medida em que ia lendo, ia escrevendo sobre a minha própria vida. Tu viste quanto tempo passei escrevendo sobre golfe pelo simples fato de ter tentado jogar o melhor que eu pude durante alguns anos. Aconteceu que eu treinava sozinho tantas horas, batia tantas bolas, que foi impossível não escrever sobre o swing, a cancha, os animais, as estações, a história do campo de golfe e tudo o mais que me passava pela cabeça durante aquele tempo. Foi impossível também não ler sobre o assunto. Os livros estão ali, na segunda estante de cima, da esquerda para a direita. Se alguma qualidade eu posso te dizer que tenho é a de não ter desistido de tentar escrever com as minhas palavras as minhas experiências mesmo diante de tantos livros maravilhosos. Eu nunca vou ser notável, meu filho, como poeta ou escritor. E não te digo isto com tristeza. Te digo porque mesmo diante do fato dos meus livros não serem conhecidos, eu não deixo de sentar as horas que tu sabes para ler e escrever. O meu ofício é este.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mar Becker

  De Mar Becker sei que nasceu em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e que é gêmea de Marieli Becker. Sua mãe, Meiri, costurava em casa e sua avó, Maria Manoela, foi vítima de uma tragédia não revelada às netas crianças. Que estudou filosofia e hoje mora em São Paulo, na reserva de Guarapiranga, com Domênico, seu marido. Sei que é leitora voraz, que tem bom gosto poético e que é culta, que gosta de cavalos, cães, gatos, Zitarrosa, de música nativista e de Glen Gould. Que toca violão e canta, gauchinha, com voz meiga, quase infantil. Sei outras coisas que, como estas, importam pouco, são letra fria diante do que ela escreve e da forma como escreve os poemas de "A mulher submersa", seu livro de estreia publicado pela editora Urutau.  A primeira impressão de leitura é de que esses poemas foram impelidos por instinto de urgente sobrevivência. Apesar da urgência, há neles lenta maturação e extremo refinamento. A leitura nos deixa quietos, maravilhados muitas vezes, enternecidos e ...

4 sonetos

Um regente do acaso para Raul Sarasola O encarte da exposição traz o artista empilhando discos de pedra lisa -gravity meditation não dualista- em três fotografias sem camisa (A pilha suspensa em ésse, o desnível, repele a queda mas captura a ameaça Aproxima o possível do impossível alinhando o centro de cada massa) Vem do caos o seu olhar polifacético Raul se entrega ao piche, ao ferro, à tela e, absorto, do escombro tira algo poético Quando plena, a ausência age, rege o acaso A face surge sempre com atraso É o abstrato sumindo que a torna bela Sant’Ana, 19 de junho 2016 Fotos em exibição Há uma série oculta em cada p&b A Chirca, O Miniabismo, O Véu, A Crosta Essa falésia é e não é uma ostra O longe vira perto, o vesgo vê Seria o lírio um pássaro pousado? Onde a sombra muda o ponto de vista outro real, que o filme não registra, some ao passar apenas vislumbrado Um campo, o céu, tão remota a brancura O nanquim de um salso no vento ao fundo O atemporal que entre as rajadas dura E pre...

"Exílio. O poema quântico". por Juva Batella

Os poemas que compõem o grande poema que se lê em Exílio não são narrativos; funcionam, antes, como fragmentos, e não como etapas ou camadas. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é, portanto, do tipo retórica ou esparramada, e compõe-se num espaço textual tão conciso, que o leitor — não tendo para onde fazer correrem os olhos — deve permanecer onde está, com o olhar virado para si e tentando, dentro de si, encontrar, neste espaço privado, uma equivalência pessoal para o jogo de espelhos de outro espaço privado: o espaço do poeta, ou, antes, do olhar do poeta sobre o mundo, sobre o seu fazer poético e ainda sobre o seu próprio olhar acerca deste fazer. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é fácil de se ler às pressas. Lendo-a às pressas, ela nos escapa. Ler poesia, em geral, não é fácil. É, antes, um movimento que caminha contrário à automatização que se ganha com o tempo e com os tempos dedicados à leitura de prosa — este correr de olhos em que saltamos de uma palavra à outra, rec...