A
grande poesia é aquela que se mostra capaz de nos arrancar de nós mesmos,
enquanto, simultaneamente, nos entranha naquilo que somos. Na vertiginosa
proximidade ou na inconcebível distância —distância de mares, de terras, de
séculos, de almas — esse paradoxo se revela de forma mais nítida. Por isso, a
poesia do mundo é a senhora do tempo. Vejam bem: não digo que ela seja
atemporal; ela existe no tempo, porém o cavalga, ou o navega, ou transita por
ele, a jusante e a montante, como as ondinas da fábula. E é por isso que um
grande poema escrito há três mil anos pode chegar até nós com a sinuosidade do
instante presente, com o mistério das sensações e dos silêncios do corpo. Mas,
para que surja a fagulha na transição de uma língua a outra, é necessário que o
poema real seja traduzido por um real poeta. É então que a mágica acontece: de
artífice a artífice, de criação a criação, o jogo de tempo e poesia se reacende
e, nesse movimento, nos reconhecemos no longínquo e nos reecontramos no
irrecuperável. Que sorte, que imensa sorte a nossa, termos Thomaz Albornoz
Neves, um poeta na pura fibra do termo, para nos revelar a luz e a sombra, a
voz e o silêncio deste Oriente.
De
estirpe única é o livro que agora vem às mãos do público. Como ocorre com os
autores radicalmente originais, a obra de Albornoz esfacela definições e, no
limite, exige uma nova categoria. Oriente
é parte de uma trilogia que inclui À
Espera de um Igual e Ocidente; ao
longo dessa série de obras, o que convencionalmente se chama de poesia autoral
se mistura ao que convencionalmente se chama de poesia traduzida. Mas deixemos
de lado esses protocolos. O que temos, em Oriente,
são traduções poéticas autorais, ou seja: recriações do homo ludens a partir do que compôs o homo faber, como o saudoso Ivan Junqueira costumava dizer. E eu acrescento: não existe outra forma de se
traduzir poesia enquanto poesia.
O
tradutor poético não deve temer o novo, nem desprezar o velho. Deve estar no
tempo como a ondina está nas águas e a salamandra no fogo. Assim é Albornoz. Ao
verter a poesia clássica da China e do Japão, o poeta cria algo novo; e,
criando, torna o passado contemporâneo ao presente e nos permite experimentar a
estranheza e a familiaridade de transitar por universos inatingíveis e
minuciosamente humanos. E, como em toda poesia de fôlego, Albornoz leva a
palavra até sua fronteira — que não é exatamente o silêncio, mas a plenitude do
sentido, uma plenitude que, se nos transcende, também nos envolve como o ar. As
páginas deste livro transformam o olhar de quem o lê: basta aceitar a realidade
do bruxedo. Escutemos o que nos diz Shitou Xiqian (século 8 a.C.) pela alma de
Albornoz: “Na escuridão há luz / Não
olhes com olhos escuros /Na luz há escuridão / não olhes com olhos luminosos”.
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