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De Vera Ione Molina Silva, sobre À espera de um igual.

 

A escritora Vera Ione Molina.


Resenha-conto sem teoria, sem linguagem acadêmica, escrita com vivência e paixão
Acordou de madrugada e decidiu não emendar um sono em outro de forma artificial. Queria o natural, o concreto, o concretismo, coisas que não a fizessem ficar lidando com significados e abstrações.
Não gostava de luz acesa na madrugada, mas foi até a sala e apanhou um livro que estava no fim da fila dos livros enviados por amigos ou comprados em lançamentos. Tinha três livros daquele autor e nunca esquecera as imagens cruas e os sons da natureza que escutou durante a leitura. Havia um cordeiro entre girassóis, os olhos fixos no céu e o chão a girar sob ele? Um touro cego que costeava uma cerca de pedra até sentir o frescor de água doce que coleia os , ésses do ar? A leitora sabia o que era “colear”, era quando o gado era tocado pelos peões e alguns animais andavam tão encostados uns aos outros que as colas se misturavam. E muita onda no pasto, e espirais nos ciprestes?
Esse era um mundo que a quase velha conhecia bem. Seu mundo da vida. Ela teve sensações semelhantes na infância e só soube expressá-las em prosa. Hoje não precisava revivê-las, se contentava em recordá-las.
Mas havia mar, misturado com o pasto. E isto inquietava aquela professora que gostava de entender a fundo o que lia. Quando conseguiu fazer uma pausa, estava na página 106, foi então que pensou ter encontrado resposta para essa inquietação:

“Da enseada, tudo é oceano em fuga
e os livros que possuo pertencem
a quem me aluga este solar por todo o ano
Fazem frente à solidão das dunas
à falta de energia elétrica
ao arpoado mergulho no silêncio
Estranho thomaz
que em mim se esquece dele mesmo
ao reparo do vento, escrevendo na varanda”

Deixou a luz acesa, com o livro de capa dura, consistente, a obra completa de um poeta denominado por três palavras, três versos que compõem um poema. Thomaz, palavra em aramaico para designar “gêmeo” (e o título do livro é À espera de um igual); Albornoz é um manto de lã com capuz, usado pelos árabes, origem do próprio autor. Capuz é palavra recorrente nos poemas contidos neste livro. Neves é o nome de seu pai, de quem a velha era admiradora, e a palavra “neve” designa uma precipitação de cristais de gelo, agrupados em flocos e formados pelo congelamento do vapor de água que se encontra suspenso na atmosfera.
Ainda tem muita poesia de Thomaz Albornoz Neves para ler nas madrugadas, são trinta anos de criação literária. Mais tarde, ele recolherá o capuz no qual se refugia, refletirá sobre sua produção e sentirá que se encerra um ciclo de busca incessante pela perfeição. Então visitará as mesmas paisagens sabendo que sua grande obra já foi criada.
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