29 de abril
Propaganda do desdém: e daí?
É raro encontrar alguém cujo trabalho envolve lidar com muitas pessoas em situação de fragilidade que seja capaz de manter a relação em um plano pessoal. O clássico exemplo do clínico de província amado pelos seus pacientes ilustra por exceção. A atenção afetuosa, sabe-se, é parte do tratamento.
Em razão disso está já em uso por equipes de grandes hospitais a importação como técnica médica de um tipo de tratamento personalizado que pasteuriza a empatia. O doente não se sente um número na mão de médicos anônimos. Mesmo que seja, não parece. E isso importa porque funciona.
Nunca é demais citar Hartman ("A guerra é um lugar onde jovens que não se conhecem e não se odeiam se matam entre si, por decisão de velhos que se conhecem e se odeiam, mas não se matam") para lembrar que estadista algum se importa com cada cidadão de forma individual.
O que um estadista jamais deve fazer é expressar sua indiferença publicamente, como se ela fosse a voz do seu governo. Esse é o motivo pelo qual se combate Bolsonaro desde que ele surgiu no cenário nacional. Tenta-se impedir que essa atitude de desprezo pelo outro passe a ser o normal da sociedade. Ao responder "E daí?" para o número de mortos da epidemia o que ele faz é propaganda do desdém. Ele diz para que repitas ao teu igual caído:
- E daí?
Ninguém é menos psicopata por ser sincero.
4 de maio
Quase nada do que fica.
De tudo que se lê e se vê por aí vai ficando pouco, quase nada.
A dedicatória aos leitores de poesia de Juan Ramón Jimenez: "À imensa minoria" mencionada em uma c@rta do querido Dilan Camargo.
A citação de Popper que abre a circular do "Meio": "Neste momento temos o direito de, em nome da tolerância, não tolerar os intolerantes". E o desânimo que ela provoca em um pacifista. Já viu brasileiro dar bola para grevista de fome? Para a não violência como ação revolucionária?
As manchetes: "Movimento contra a PF une Centrão, Lula e Bolsonaro" e "Lula frita Moro porque prefere enfrentar Bolsonaro em 2022" ameaçam colocar o Brasil na mesma escolha de Sofia de 2018.
Entre o nós e o eles toscamente defendido por Haddad sexta na Globonews está a maioria que não quer a volta do Lula nem a reeleição de Bolsonaro.
Até quando vamos permitir que a barulhenta minoria polarizada condicione nossa visão da política brasileira?
Mas de todas fica ainda mais encravada a frase do mural do Leonidas Bayo: "Sabe o que acontece quando você fica reclamando de tudo no facebook?
Nada!
E, mesmo assim... seguimos.
15 de maio
Da panela para o fogo
A saída de Teich reitera que Bolsonaro não admite enfrentar a epidemia com parâmetros científicos. O parâmetro será político. E ponto.
A cloroquina é a solução, o lockdown parcial ou radical mata mais que o vírus, a economia vem antes que a saúde. A eleição antes que o governo. Política.
O Centrão quer o Ministério da Saúde. O Centrão quer todos os Ministérios. Mas o governo é do Exército. Mourão, através do Estadão, demoniza o Legislativo, o STF e a Imprensa pela inércia do Executivo . Seu tom não é nem nunca foi o de um democrata e o coloca muito longe de ser a alternativa via impedimento.
Ou seja, da panela para o fogo.
No Rio, são 900 para um leito. Na fronteira, a prefeita e o ministro da saúde uruguaio fazem comício no parque. Meu vizinho reabriu a escola de motorista, a fila passa pela minha porta, dobra a esquina, apertada. Quem vai e vem não sabe se tem o vírus. Não sabe se só o hospeda e se o transmite. Não sabe se quem pegou virou zumbi.
Diante do caos, os Estados deverão reafirmar sua autonomia e enfrentar a crise de forma particular. O pacto Federativo está sob enorme pressão. Somos brasileiros ou gaúchos, gaúchos ou santanenses, santanenses ou cada um por si?
Quem faz isolamento é minoria. A conclusão é evidente. Assumamos. A crise é moral antes de ser política. Não há empatia coletiva. A maioria dos brasileiros é bolsonarista. A nós cabe não só apontar ao Presidente, mas acusar quem o apoia. Nosso fracasso é civilizatório.
E a epidemia virou um big brother na televisão. Ninguém vê a morte como realidade. Pelo menos enquanto não chegar a hora de fazer parte do show.
16 de maio
Olga, cara amiga. Sim, foi o vírus.
Olga Savary 1933-2020
18 de maio
Mentiras e verdades
Na ausência de um Ministro da Saúde, o Presidente Jair Bolsonaro determinou que o interino na pasta, Gal. Eduardo Pazuello, assinasse o decreto que libera o uso da cloroquina até mesmo em pacientes com sintomas leves. O general obedeceu.
Olavo de Carvalho, entrincheirado em seu rancho nos EUA, afirmou ontem que a epidemia mundial não existe, é a mais vasta manipulação da opinião pública da história humana. Ato contínuo, surge nas páginas olavistas um novo apelido para a máscara sanitária: o acumulador de baba.
Enquanto isto, assistimos Rodrigo Maia engavetar os processos de impedimento em nome da estabilidade.
E, de fato, seria ótimo que o líder do Congresso usasse a gaveta para estabilizar a Nação, no lugar de pressionar o Executivo com ela e aumentar seu poder de barganha.
Que o Olavo tivesse razão e tudo fosse um pesadelo usado por ele para alimentar o fascismo latente em todos nós.
E que, por fim, Bolsonaro soubesse mais que os epidemiologistas. Que a liberação do remédio da cura não fosse outra mentira criminosa para induzir o povo a furar o lockdown imposto pelos governadores.
Não importa se há mérito para o impedimento, se a cloroquina pode provocar infartos, ou se o contágio avança matando cada vez mais perto. Está certo. Aldir Blanc, Sérgio Sant'Anna e Olga Savary estão vivos, ninguém morre de covid.
19 de maio
Um retrato do momento
Existe uma linha muito clara entre demagogia, bravata e crime de responsabilidade. E essa linha já foi ultrapassada por Bolsonaro algumas vezes. Há inúmeros pedidos de impedimento com sólida base legal protocolados na Câmara. O problema é estarmos submetidos a uma organização política cuja estrutura permite que se use a lei de acordo com a direção do vento.
O nosso é um sistema de poder fragmentado (presidencialista de coalizão, multipartidário e com eleições proporcionais majoritárias), graças ao qual um deputado medíocre, furtivo e sem escrúpulos chamado Rodrigo Maia contou com o apoio de todas as forças políticas do país para preservar Michel Temer (coligação PT/PMDB) na cadeira presidencial mesmo depois das inacreditáveis palavras grampeadas por Joesley Batista:
-"Tem que manter isso, viu..."
"Isso", como se sabe, era meio milhão por mês para manter calado na cadeia ao Eduardo Cunha, predecessor de Maia e aliado de Temer no conspiratório processo que levou à queda de Dilma Rousseff.
Mas que apoio, qual espectro de forças?
Apoio do mercado diante da urgência de reequilíbrio nas contas públicas depois de Rousseff, apoio da cambaleante classe política diante da possibilidade de blindagem contra a Lava Jato e, finalmente, apoio da própria oposição recém-deposta que então precisava ar até que as eleições de 2018 chegassem com Lula de volta ao palco.
Hoje, a mesma conjuntura que permitiu toda a articulação em favor de Michel Temer mantém Bolsonaro em fogo brando. Os motivos, como antes, são diversos para cada ator. Total, o que mais importava até ontem já foi. Refiro-me à reeleição.
O motivo para Maia e o Centrão é a inserção em um governo cada vez mais vulnerável. Para o PT e a oposição, o cálculo entre simular o confronto e deixar que a direita sangre até a hora das urnas. E para o restante democrata, a ameaça de um General com o perfil autoritário do Mourão assumindo a presidência.
O mercado está sem garras, retraído. A posição das peças no momento protege o governo ao tempo em que permite o loteamento das pastas e a gradual captura do Estado. Até mesmo o STF às voltas com o Moro faz fumaça enquanto Maia manobra.
O custo da conjuntura, agravado pela epidemia, paga quem nós sabemos. Não é à toa que o Congresso é atacado. Mas enquanto não forem promovidas reformas radicais que tragam coesão institucional seguiremos reféns das barganhas por cargos e o Brasil será o que sobrar das chantagens pagas por Bolsonaro para sobreviver.
Ou seja, ainda mais do mesmo século XIX de sempre na velha, velha Nova República.
21 de maio
Há um ano.
Há um ano, quando éramos outros e não sabíamos já havia desgoverno. A nota resgatada pelo mural critica a situação, Maia, o Centrão e a oposição.
Um Lula quieto, com a prisão minando dia a dia o timming do seu discurso, não dava sinais da senilidade atual.
Está cada vez mais fácil o trabalho de quem faz ver a tragédia provocada pela polarização no Brasil. Engana-se quem pensa haver dois populismos antagônicos.
21 de maio de 2019
Inédita, a convocação para protestar contra o sistema que impede o governo de governar quer o quê?
O fim do debate político?
Mostrar que os milhões de votos que elegeram Bolsonaro pressionarão a oposição (leia-se Maia e o Centrão) a abrir mão do toma lá dá cá, essência do presidencialismo?
Justificar, em caso de um improvável sucesso nas ruas, fechar (com quem, se nem o Clube Militar embarca nessa?) o Congresso e o STF?
O que quer Bolsonaro ao convocar os protestos? Por que ele simplesmente não faz o que foi eleito para fazer? Por que ele não governa? A resposta é simples, não?
Mas e a oposição, a real, onde está?
Inédito é um governo protestar contra a situação!
21 de maio
Fernando Py, poeta, generoso amigo. 1935 - 2020.
22 de maio
Não é política, é ideologia
Ao construir a coalizão com o Centrão, Bolsonaro não só faz mais do mesmo, ele finalmente começa a governar. Demorou 500 dias desde a posse para que o candidato saísse e o Presidente entrasse na cena.
A base parlamentar, mesmo que de ocasião, neutraliza o quorum para uma ainda distante votação de impedimento, isola Maia e entra forte na disputa pela Presidência da Câmara, cadeira que se ele fosse político profissional teria comprado ainda durante a campanha. Sem ela, como o PT sabe muito bem, não há pautas, ninguém governa.
A aliança com os Progressistas (partido com mais investigados na Lava Jato) é boa notícia, portanto. Ainda que frágil, traz expectativa de governabilidade. É mais que o caos de agora. O que Bolsonaro fará com a governabilidade é a ver. A julgar pelo presente, a temer.
Se isto tem a ver com aquilo, não sabemos. O fato é que ontem Bolsonaro e os governadores tentaram um entendimento. Os governadores exigem receber os já aprovados pacotes de ajuda enquanto o governo condiciona o dinheiro à abertura do comércio e da indústria nos Estados.
Não há ideologia alguma aí. Há, sim, o jogo de poder que inviabiliza um plano conjunto, nacional, de combate à crise. E, entrementes, mortes diárias, às centenas.
De viés doutrinário tirei do noticiário apenas o comentário de Paulo Guedes sobre estender o pagamento do auxílio emergencial por não mais que dois ou três meses. Caso contrário, diz Guedes, "ninguém trabalha".
Para o Ministro da Economia, em um país de milhões de miseráveis como o nosso o direito por uma renda básica de cidadania é um estímulo ao ócio.
E isso, é bom que fique claro, não é política, é ideologia.
23 de maio
Gaiola dos Loucos
Sem a atenção inteira, meio indo e vindo, por questões de preservação existencial, e com a ameaça de intervenção militar do Gal. Heleno ressoando sobre aquelas imagens, captei os seguintes fragmentos do encontro ministerial de 22 de abril último:
O Ministro do Turismo fez a única proposta relacionada ao vírus em toda a reunião. Pediu verba para hospedar em hotéis perto dos hospitais aos médicos e suas famílias. Com a medida pretendia combater a crise hoteleira e oferecer apoio emocional aos profissionais da saúde. Mudou de assunto e pediu a legalização dos cassinos para ajudar a enfrentar o iminente colapso da economia.
O Ministro da Educação reivindicou a antiguidade no grupo e criticou colegas com agenda própria. Quer prender todo o STF e demolir Brasília. Tem pavor de índios e ciganos, salvo se deixarem de ser índios e ciganos. Propôs uma eugenia cultural brasileira.
O Ministro do Meio Ambiente sugeriu aproveitar o foco da imprensa na epidemia para relaxar a legislação de proteção ambiental. "Ir passando a boiada" foi a expressão (note-se a origem) que usou.
A Ministra dos Direitos Humanos relatou o andamento de diligências para prender Prefeitos e Governadores. O motivo, sabe-se hoje, era provocado por fake news.
O Ministro da Economia discorreu sobre seus estudos, quantas vezes leu Keynes, o que disse a seus pares de Chicago e terminou propondo vender o Banco do Brasil.
O Ministro da Saúde disse ser o novo Ministro da Saúde e foi interrompido pelo Presidente.
O Presidente... bem o Presidente está armando a população para enfrentar a ditadura. Na falta de um comunismo que atente contra a liberdade individual, ditadura seria o lockdown imposto à população por Prefeitos e Governadores. Ameaçou defenestrar Ministros elogiados pela mídia e não sei o quê em relação a hemorróides, além de outros inumeráveis impropérios. Na falta de acesso ao setor de inteligência da PF, e diante da inoperância da ABIN mencionou possuir uma ativo burô particular de informação.
Apanhando quieto, o Ministro da Justiça pensava em como revidar. Quem sabe tornar pública aquela reunião...
Mourão, mudo, era o espetáculo.
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