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A um futuro poeta maior




                                                          A Roberto Sosa, teu conterrâneo


Tenho o livro aberto
e escrevo na medida em que folheio
São notas vagas, descontínuas
Leio ao poeta mais que ao seu livro


Teus poemas sabem mais da vida
O falso dilema sobre o compromisso
e tudo mais que ouvi sobre a missão do artista
tomando tannat contigo no mercado agrícola
não está nesta poesia, o livro te superou


A voz do poeta é mais elevada que a sua voz de rua
De certo modo, sou um leitor ideal
Desconheço tua obra e sua fortuna crítica
Ignoro a imagem que o meio tem de ti
os engajamentos de origem, as vanguardas, os manifestos


A rede aberta para o trapezista
O contato que tivemos mal permite situar o homem
que pouco a pouco a leitura aprofunda
Quando te ouvi no pátio do museu colonial
intuí um oceânico poder de associação
limitado, é certo, pelo próprio excesso
e pelo contexto para o qual escreves
Teu oprimido país no Mar das Caraíbas


A poesia para ser universal
deve transcender a circunstância e sua notícia
Datada, será meio para ações mais nobres
e não uma luz em si
pedra de toque capaz de provocar no leitor sua alquimia


Rara a exceção e tu, com frequência, és uma
Todo dom tem seu cultivo
e há quem prefira o viço de uma colheita pequena
É mais claro o tom que não se exaure
ou se repete
Não lembro, e te digo com distância, friamente
de encontrar alguém mais talentoso na tua geração


O futuro dirá
Talvez só tenhas a fazer o que já fazes
Ademais, nesta época sem clássicos, de panteões glamourizados
quem sabe ao certo o que seria um poeta maior?
Difícil dizer, há tanta qualidade no pastiche
tanta obra construída por contágio
Sabemos quando o encontramos
Tem a ver com tocar a muitos de formas distintas
a ser assimilado por várias culturas, a viajar pelos tempos
a sorte de resistir com graça a tradução
a ser único em cada leitor


Tua poesia, malgrado a militância, é intimista
A beleza dos poemas curtos
revela que muitas vezes sacrificas
a potência da contenção pelo palco
O magma da tua matéria
quanto mais arde, mais ouriversaria exige
Recordo, no museu, o magnetismo
a hipnose provocada pelas sílabas
o caleidoscópio rodopiando até que a plateia capta
sem saber porque, nem da onde vem, a tua dor do mundo


Tua metade completa


Perdoa se soo categórico, estou cômodo
Meu próprio inferno já enfrentou essas questões indissolúveis
Não falo de cima, falo de fora
No meu caso, ao escrever
eu pretendia ser lido pelas minhas influências
encantar os mestres
Estão todos mortos e eu livre
(mais sobre isto em outro momento, se interessar)


Teu universo é multifacetado por uma voragem contemplativa
Mas apesar de girares em cada foco do enxame
não há paisagem em ti sem o filtro da História
O homem é a medida do poema
a compaixão a lente do olhar


A que vou com tudo isto?


A que mesmo com marcas e cicatrizes
só existimos no presente
Podemos, é vero, cada qual viver seu passado
como se ele fosse um só, comum a todos
Porém há também, ou melhor, há antes
o presente tal qual é, sem o drama da existência
Quietude onde se está simplesmente
Sem redenção, na renúncia do tempo


Em paz
Bem, virá o dia
em que o peso da tua imagem parecerá insustentável
E quanto antes, auguro, melhor
Se te toca criar uma arte maior
será pelo homem que responda quem resta em ti se calas
Será de quem traga do silêncio mais profundo
essa outra medida vital


Se ao menos pudesses estar sem pensamento
atento apenas ao lago da atenção
te tornarias o que nasce ali
Mesmo a alguém tão sensível
viria bem viver um pouco além da empatia
Viver só sendo até ser ninguém em tudo
Afinal, sabemos, o resto é eco
a poesia só existe no poema, não dura no que é dito dele





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