Pular para o conteúdo principal

Postagens em tempos de peste I. 26 de fevereiro - 25 de março




26 de fevereiro

A modo de preâmbulo
- Eu não entendo. A convocação é do Executivo contra o Legislativo? É contra o Judicário? É contra os dois? É pelo Presidente honesto e contra o mundo inteiro democrata?

- Não, seu comuna merda. É contra tudo isso que tá aí. Esses políticos corruptos que não deixam que o governo governe. Esses juízes de ocasião. É contra ti, poetinha vagabundo, contra o jornalismo que só crtitica, contra o bom... vai ver o vídeo, vai aprender o hino, vai tomar no...

- Vagabundo é elogio, muito obrigado. E o senhor tem toda a razão, qualquer um que argumenta sem insultar fica na esquerda da onde o senhor está. Aliás, onde mesmo é que o senhor está?

- Hã? Eu estou armado. Cala a boca.


16 de março

Bolsonaro's Day
A atitude de Bolsonaro ontem, indo ao encontro dos seus apoiadores, é mais um exemplo do comportamento que o elegeu. O que surpreende não é o número pífio de pessoas nas manifestações - era já esperado -, nem as fotos trucadas inventando a multidão ou o orgulho dos caras com cartazes negando o vírus...

O que estarrece é o silêncio de hoje, de agora, dos seus eleitores.

É um bom momento para o arrependimento. A terra, sabemos, não é plana.



17 de março

Tempos turvos
Filho, Obscurantismo, é isto. Tempos em que se costuma impedir deliberadamente que os fatos ou os detalhes de algum assunto se tornem conhecidos (Wiki). E o obscurantismo contemporâneo vem com esses conceitos novos, não-realidade, não-verdade, fake news.

Ou: estado de espírito que nega a razão. Terra plana, aquecimento global, desmatamento, regressão à Idade Média (né, Burke)...

Tempos turvos, estes. Apesar do dia de sol, entrada de outono, em Santana do Livramento.

As pessoas andam nas ruas, trabalham, circulam como se nada estivesse acontecendo aqui e no mundo. Eles ouvem o Bolsonaro, claro. E seguem o exemplo dos nossos deputados e senadores que depois de avacalharem o Presidente por chamar o covid de gripezinha foram para a boca livre da CNN. Tudo junto e misturado.

Vivem como sempre viveram, como se a contaminação só existisse longe e não chegasse nunca. Senão, total, a salvação é certa.

Nós somos ignorantes, egoístas, irresponsáveis e claro, (2% para a educação) imortais.


20 de março

Sobre a fragilidade
Não creio que seja hora de politizar a epidemia. Porém, associar Chernobyl e o vírus a ditaduras é infantil, especialmente vindo de um deputado que cogita com frequência uma como saída para os problemas institucionais no Brasil.

Nunca tivemos outro momento mais claro para olhar a sociedade e constatar a imediata fragilidade das pessoas que vivem abaixo e na linha de pobreza.

A dificuldade de transmitir as medidas básicas para evitar a contaminação nas comunidades vem daquela alienação do mundo que cria outro mundo. Pois quem nunca se sentiu incluído não percebe como pode ser atingido por uma realidade distante, inalcançável.

Mas vejam, se a situação dos miseráveis nunca comoveu, quem sabe agora, diante da extrema vulnerabilidade a que estão expostos, pela primeira vez comova. Um mal comum a todos, em tese iguala a todos.

Só que o mal só parece ser comum a todos. A maioria a cair será aquela que vive por um fio dentro da normalidade, no dia a dia. Não é a fragilidade ao vírus, mas a pobreza. Olhem, está aí, nítido, exposto, cristalino como nunca.

É uma grande oportunidade para humanizar-se.

p.s. E antes que interpretem este post como simpático a U.R.S.S. e a China, esclareço que não, não mesmo.


21 de março

Tempos para despertar
Não importa se sua fé precisa da muleta das imagens, do ambiente das igrejas, da orientação de um pastor. Se for fé está dentro, dispensa missa, luz no vitral, cantos congregados. Tente sem pensar, com respirar basta.

Não é esse o entendimento de Edir Macedo, Silas Malafaia, nem do Papa, esse papa tão progressista, tão atacado pela direita...

Claro, hoje o rebanho espera mais milagre da ciência que de Deus e o cristianismo não pode se permitir tamanho luxo. (Managgia, logo agora que voltava o Deus Vult, a terra plana e o criacionismo). Moderno, o Bergoglio, não? Antes a paróquia, depois a segurança sanitária.

Ontem escrevi sobre não politizar a crise. Mas ler que os templos e as igrejas, a despeito das recomendações de reclusão, permanecem abertos aqui e em Roma, preocupa. Quer dizer, Deus não pode perder para a vacina e é pelos votos dos fiéis que os políticos expõem esses mesmos fiéis ao vírus. E em cadeia a toda a sociedade.

Que oportunidade maior que esta para ver a manipulação da fé, a covardia do poder das Igrejas e suas ramificações no Estado?

O Presidente e toda a sua bancada evangélica, bom... É preciso levar em conta a base, não é mesmo?

Que transparência. Que tempos para despertar.

Sim, precisamos mudar.


22 de março

Viajando na maionese
Tudo parou. As folhas das árvores se movem, mas o tempo está como o céu. As pombas, o joão-de-barro, o bem-te-vi de todos os dias foram explorar a paz nova longe da redoma do pátio. No lugar do fim do mundo sente-se seu começo. Há silêncio. As coisas são como são, não há cultura, nem pensamentos. A modernidade foi só um pesadelo. Eu sei, viajo na maionese, mas está aí, agora, é só olhar e ver.

p.s
e agora em italiano

Tutto si è fermato. Le foglie sugli alberi si muovono, ma il tempo è come il cielo. Le colombe, il ucello-di-argilla, il tordo giallo di tutti i giorni andavano a esplorare la nuova pace lontano dalla cupola del cortile. Al posto della fine del mondo si sente il suo inizio. C'è silenzio .Le cose sono come sono, non c'è cultura, né pensieri. La modernità è stata solo un incubo. Lo so, mi prendo in giro, ma è lì, adesso, basta guardare e vedere.


23 de março

Orwell na veia
Repasso abaixo o excelente - e longo - artigo de Byung-Chun Han "O coronavírus hoje e o mundo de amanhã" por ler em diversos murais elogios aos médicos cubanos, aos aviões que Putin mandou para a Itália e veementes defesas do regime chinês.

Que a alfabetização e a saúde em Cuba são modelares é indiscutível. Mais se pensarmos no tamanho da ilha e no que é possível alcançar quando a prioridade é o acesso de toda a população a direitos tão fundamentais. Um tanto menos se levarmos em conta que o preço é um regime antidemocrático.

Tal acesso é algo inimagínável no Brasil de hoje e, a considerar a construção de estádios para a Copa do Mundo para usar um dos tantos exemplos emblemáticos da falsa esquerda, também no Brasil dos antigos governos deste séc. XXI.

Sigo batendo na tecla. Só com liberdades individuais, democracia e igualdade social uma sociedade tem chance de humanizar-se. Não é bem o que prognosticam os filósofos contemporâneos, pessimistas que estão, na análise dos acontecimentos de hoje.

Em direto contraponto a Žižek, Byung escreve a respeito do onipresente controle digital (câmeras, drones e de histórico de atividades na rede) sobre a população chinesa em tempos de epidemia e antes dela. Uma ditadura hoje é assim. Sujeição surda, pela consciência virtual.

Orwell na veia.


24 de março

Falso dilema
I
É um falso dilema. Vazar a quarentena para impedir a recessão somando e diminuindo vidas pelo vírus contra a conta do resto. Vociferar que sem trabalho mais pessoas serão afetadas e não só os velhos e doentes, mas as famílias todas.

Para defender as medidas preventivas não levo sequer em consideração a lógica, óbvia, do controle da peste. (Sabemos que se não houver reclusão o contagio cresce exponencialmente, o que deveria bastar para o entendimento).

Mas não, não é isso. Nós obedecemos a quarentena para proteger os mais frágeis. Porque não somos uma alcateia que empurra para a borda do grupo na direção das hienas os mais doentes, os mais velhos e os mais fracos.

Nós somos civilizados. Se pararmos para pensar, veremos que é a lógica da meritocracia, da lei do mais forte, que dá lugar a que alguém faça contas e decida quantos devem morrer para que as perdas sejam menores. Como se o mundo não tivesse reservas para enfrentar esses tempos de contenção.

Nós não sacrificamos.

p.s.
Que bom se isso fosse verdade. Porque desde sempre, os pobres, os miseráveis, os excluídos estão na quota da "normalidade". Quando isto terminar, ataquemos pois, a normalidade.

II
Bem, a oportunidade para o Sr. e a Sra., eleitores desse mentecapto, se renova. E não é de arrependimento. É de tomada de posição. O Lula não vai regredir a esclerose, a Dilma não vai ser atingida por um raio de inteligência e o Ciro certamente vai seguir repelindo todo mundo com coroneladas. A eleição está em aberto. E só não flertamos com o impedimento porque o rídiculo não justifica e o Mourão é a opção.


25 de março

A sitting duck
I
O assunto é controvertido e me torna a sitting duck dos que não abrem mão da sua "identidade política". Porque é o que temos feito. Os posicionamentos partidários atraem o debate e o tema que se discute some numa cortina de fumaça criada por uma espécie de guevarismo da Gávea ou pelo fascismo de condomínio. Ambos virtuais, claro está.

Mas ao que vou é mais sensato. Se tentássemos discutir a crise sem o ranço ideológico, procurando soluções práticas não seria mais eficaz, mais brasileiro?

Ideologias são marcas fixas, ideais, que emprestam identidade a grupos políticos. Confundir a própria história pessoal de "militância" ou de "patriotismo" com uma imagem de si mais correta que a dos demais é representar um papel. Quando menos se espera, sua personagem está exigindo coerência, mesmo quando os fatos a contrariam. E aí, querem saber? Danem-se os fatos.

Defender que o Lula é honesto e o Bolsonaro um Mito serve a quê diante da crise?

Quem espera conforto interior fazendo arminha e negando a epidemia ou usando boina com estrela e isentando os efeitos de 20 anos do PT hoje não entende que nada é mais tão sólido, que as identidades individuais e as mentalidades coletivas estão em mudança constante e se contaminam umas com as outras.

Ninguém tem mais um só reflexo. Somos tantos quantos quem nos vê. (Na real, quem precisa ter imagem?). Não há uma crença única, um único partido imaculado, uma forma fixa de enquadrar o movimento do mundo.

É possível, acreditem, um caminho do meio.

II
Taí ó, a solução. Em tempos de lunáticos, alguém razoável. Mas malandro, muito malandro. Ia bem até falar em abrir igreja. No vácuo de poder, fazendo falsas concessões, Mandetta avança!



do facebook, 2020

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mar Becker

  De Mar Becker sei que nasceu em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e que é gêmea de Marieli Becker. Sua mãe, Meiri, costurava em casa e sua avó, Maria Manoela, foi vítima de uma tragédia não revelada às netas crianças. Que estudou filosofia e hoje mora em São Paulo, na reserva de Guarapiranga, com Domênico, seu marido. Sei que é leitora voraz, que tem bom gosto poético e que é culta, que gosta de cavalos, cães, gatos, Zitarrosa, de música nativista e de Glen Gould. Que toca violão e canta, gauchinha, com voz meiga, quase infantil. Sei outras coisas que, como estas, importam pouco, são letra fria diante do que ela escreve e da forma como escreve os poemas de "A mulher submersa", seu livro de estreia publicado pela editora Urutau.  A primeira impressão de leitura é de que esses poemas foram impelidos por instinto de urgente sobrevivência. Apesar da urgência, há neles lenta maturação e extremo refinamento. A leitura nos deixa quietos, maravilhados muitas vezes, enternecidos e ...

4 sonetos

Um regente do acaso para Raul Sarasola O encarte da exposição traz o artista empilhando discos de pedra lisa -gravity meditation não dualista- em três fotografias sem camisa (A pilha suspensa em ésse, o desnível, repele a queda mas captura a ameaça Aproxima o possível do impossível alinhando o centro de cada massa) Vem do caos o seu olhar polifacético Raul se entrega ao piche, ao ferro, à tela e, absorto, do escombro tira algo poético Quando plena, a ausência age, rege o acaso A face surge sempre com atraso É o abstrato sumindo que a torna bela Sant’Ana, 19 de junho 2016 Fotos em exibição Há uma série oculta em cada p&b A Chirca, O Miniabismo, O Véu, A Crosta Essa falésia é e não é uma ostra O longe vira perto, o vesgo vê Seria o lírio um pássaro pousado? Onde a sombra muda o ponto de vista outro real, que o filme não registra, some ao passar apenas vislumbrado Um campo, o céu, tão remota a brancura O nanquim de um salso no vento ao fundo O atemporal que entre as rajadas dura E pre...

Saudação a Sydney Limeira Sanches, meu amigo

        Amanhecia hoje quando, ainda de olhos fechados, comecei a fazer um exercício de memória. E minha memória é péssima, devo dizer. As lembranças surgem em cenas soltas e passam desconexas.  Pilotis da PUC, Ala Kennedy. Março de 1982. Por acaso, nos encontramos sentados lado a lado na última fileira de cadeiras, Sydney e eu, dois desconhecidos, durante a primeira aula de Introdução ao Direito. E assim, lado a lado, seria durante os cinco anos seguintes, até a formatura. Depois de oito meses morando em Copacabana e sem conhecer ninguém, Sydney foi o primeiro entre os cariocas que me disse:  -Passa lá em casa.            A diferença foi que me deu o endereço.  Sydney é tijucano.            Com a TV na garagem e entre os seus amigos de infância, o Reco, o Dado, o Osvaldo e o Girino, na calçada pintada de verde-amarelo, assisti o primeiro jogo da Copa de 82. Brisa se chamava a ...