para Juan e Santiago
Nasci em Sant’Ana do Livramento
e aqui cresci um pouco raiz boiando na água
Nunca pude intuir ao certo quem eu sou, nem de quem venho
Não sei, entre os meus maiores,
quanto trago de Belchior, de Tauro ou de Blondina
Até certo ponto é como se eu fosse recém-chegado
Ou mesmo anterior a eles
Moro no chalé dos meus bisavós
e que será dos meus filhos
A conta da luz ainda vem em nome de Dorval Brites Neves
há décadas falecido
Do pouco que possuo e se pode avaliar
sou apenas um fiel depositário
Compro tempo e o alongo, é o que faço
Sempre pensei que o fruto de qualquer trabalho
deveria durar mais que minha vida
Entre os lugares aos quais pertenço
conto a Coxilha Negra - para os castelhanos “de Haedo” -
Um repecho da Barão do Triunfo
e um vale no Rincão da Carolina
Mas são todos lares em trânsito, como se eu vivesse de visita
Vinte anos, mais ou menos, estive longe da Fronteira
A metade, rato de praia em Copacabana
Graduei-me em Direito, por exclusão
Fiz mestrado em Literatura, pelo sustento da bolsa
Nunca ouvi nenhum chamado
desconheço o que seja a vocação
Solitário por natureza, centroavante pescador
Jogava pelo gol e a despeito do time
Em Roma, na esperança de viver em grupo, fiz cinema
Aprendi mais no escuro diante da pantalha
e no silêncio da moviola, restaurando filmes para a
cinemateca
do que nos sets que frequentava
Se não fracassei, desisti, o que vem a dar no mesmo
Dirigi caminhão de lixo entre Messina e Palermo
Fritei batatas na Victoria Station
Fui faxineiro de livraria, espanador de plumas na mão,
perto do Clube de Remo, atrás do Ponte Vecchio
De valor trouxe comigo os acentos, dialetos e idiomas
que conheci traduzindo versos enquanto por lá estive
Filmei curtas e documentários de quinta categoria
Editei boas revistas de literatura
Escrevi a biografia - de forma arrevesada, a verdade seja
dita -
de um poeta esquecido
Hoje crio gado, ovelhas e cavalos
apesar do espírito vegetariano que remonta à Assis
a um Francisco sem religião
Em nenhum ofício encontrei-me a gosto com a classe
O que dizer dos graxains, nossos terratenentes?
Prefiro o campo aos estancieiros
como se prefere o poema ao poeta
Já publiquei em meu nome
tentei viver desta pena - penei, para dizer outra verdade -
Mas não sou escritor, não no sentido do termo
Bissexto, uso as palavras como quem se lava
Como quem purifica experiências
Assim, se escrevo tenho a impressão de viver em dobro
Quando eu tinha 12 anos galopei como não se faz
nas pedras de um arroio seco lá na Estância do Cerro
A égua era baia ruana, crioula retacuda
Tropeçou afocinhando e rodou sobre o pescoço
Ainda agora sou capaz de sentir depois do estalo
como expirava comigo
preso pelos estribos sem sequer um arranhão
como expirava comigo
preso pelos estribos sem sequer um arranhão
Já fiquei sem ar na garrafa contra a ilha de Âncora
a profundos 40 metros do mar escuro de Búzios
Gris algum foi mais vivo
que o daquele céu surgindo através da água turva
Rolei da moto a cento e tantos por hora no túnel da Joatinga
Senti o soco do vácuo
e as janelas iluminadas do ônibus 308 contra o piche da
parede
Sobrevivi outras vezes
incluindo ao degrau de um trem roçando minha camisa
embaixo da chuva fina e dos fogos de artifício
do reveillón de Lisboa
Atrasado para a festa evitei a passarela do Largo de São
Domingos
pelo furo na tela dos trilhos
Ignorava que depois da curva em alta velocidade
o comboio engorda na reta
Em casos assim, que sentido dar à sorte?
Como não renascer do susto com a graça de ser melhor,
ainda mais amoroso?
Sou um homem de destinos
sem saber bem onde ir com a luz que recebeu
Sempre acontece igual
À revelia, as palavras criam um personagem
Li poemas para 15 mil pessoas que faziam meu nome de coro
em um anfiteatro na selva das montanhas de Medellín
Só pode ser um engano, pensei pasmo comigo
Lá como aqui eu falava com uma voz irreconhecível
Ao ler-me, ouço um estranho
que ao ser lembrado me oculta diante de quem o recorda
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