Pular para o conteúdo principal

Na Ferradura dos Vinhedos





                                          para o Calico, meu amigo, ao seu pedido


I
Há uma cave escavada
na pedra do cerro Palomas

A folhagem na boca da gruta
filtra a luz nos barris

Quem sobe a trilha bebe
a vertigem do perau 
no primeiro gole de vinho


II
Da cave ao horizonte tudo que ondeia é campo 
e o olhar termina sem alcançar a distância

Um cardume
a sombra das garças voando na onda do pastiçal

Outro gole e o espaço sem fim é vinho



 III
Vinhas e videiras, uvas e azeitonas

Uma cabra para o queijo
Um cordeiro para a lã

Ar com felpa de marcela
à sombra das taquareiras

Um tiro de rolha revoa
as caturritas em bando


IV
O calor da pedra ao sol
que o topo do Cerro irradia
e um aro de abutres dentro

O gole tem ar de altura


V
 Na curva fria da sanga
que redemoinha na pedra
mergulho a jarra de barro

O voo da garça n’água
vira sombra no campo
Decanto meu vinho tinto


VI 
O aboio do pombão
trazendo a nuvem que ainda não existe

E as rajadas da Via-Láctea
que ninguém vê passar na brisa

Tem gosto de vinho tinto


VII
O cordeiro
mais branco um instante
antes da noite, depois do poente

Não só a luz
Também a morte da estrela viaja
apagando a própria esteira

São coisas que digo e que entendes
por causa do vinho tinto


VIII
E se olhas longe assim
sem ver
o luar reflui do horizonte


Comentários

Unknown disse…
Muito bom. Abç.
Anônimo disse…
��

Postagens mais visitadas deste blog

Mar Becker

  De Mar Becker sei que nasceu em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e que é gêmea de Marieli Becker. Sua mãe, Meiri, costurava em casa e sua avó, Maria Manoela, foi vítima de uma tragédia não revelada às netas crianças. Que estudou filosofia e hoje mora em São Paulo, na reserva de Guarapiranga, com Domênico, seu marido. Sei que é leitora voraz, que tem bom gosto poético e que é culta, que gosta de cavalos, cães, gatos, Zitarrosa, de música nativista e de Glen Gould. Que toca violão e canta, gauchinha, com voz meiga, quase infantil. Sei outras coisas que, como estas, importam pouco, são letra fria diante do que ela escreve e da forma como escreve os poemas de "A mulher submersa", seu livro de estreia publicado pela editora Urutau.  A primeira impressão de leitura é de que esses poemas foram impelidos por instinto de urgente sobrevivência. Apesar da urgência, há neles lenta maturação e extremo refinamento. A leitura nos deixa quietos, maravilhados muitas vezes, enternecidos e ...

4 sonetos

Um regente do acaso para Raul Sarasola O encarte da exposição traz o artista empilhando discos de pedra lisa -gravity meditation não dualista- em três fotografias sem camisa (A pilha suspensa em ésse, o desnível, repele a queda mas captura a ameaça Aproxima o possível do impossível alinhando o centro de cada massa) Vem do caos o seu olhar polifacético Raul se entrega ao piche, ao ferro, à tela e, absorto, do escombro tira algo poético Quando plena, a ausência age, rege o acaso A face surge sempre com atraso É o abstrato sumindo que a torna bela Sant’Ana, 19 de junho 2016 Fotos em exibição Há uma série oculta em cada p&b A Chirca, O Miniabismo, O Véu, A Crosta Essa falésia é e não é uma ostra O longe vira perto, o vesgo vê Seria o lírio um pássaro pousado? Onde a sombra muda o ponto de vista outro real, que o filme não registra, some ao passar apenas vislumbrado Um campo, o céu, tão remota a brancura O nanquim de um salso no vento ao fundo O atemporal que entre as rajadas dura E pre...

"Exílio. O poema quântico". por Juva Batella

Os poemas que compõem o grande poema que se lê em Exílio não são narrativos; funcionam, antes, como fragmentos, e não como etapas ou camadas. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é, portanto, do tipo retórica ou esparramada, e compõe-se num espaço textual tão conciso, que o leitor — não tendo para onde fazer correrem os olhos — deve permanecer onde está, com o olhar virado para si e tentando, dentro de si, encontrar, neste espaço privado, uma equivalência pessoal para o jogo de espelhos de outro espaço privado: o espaço do poeta, ou, antes, do olhar do poeta sobre o mundo, sobre o seu fazer poético e ainda sobre o seu próprio olhar acerca deste fazer. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é fácil de se ler às pressas. Lendo-a às pressas, ela nos escapa. Ler poesia, em geral, não é fácil. É, antes, um movimento que caminha contrário à automatização que se ganha com o tempo e com os tempos dedicados à leitura de prosa — este correr de olhos em que saltamos de uma palavra à outra, rec...