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As árvores da Silveira Martins


                   

O pessoal de campanha os chama Paraísos. Ou seriam só os castelhanos? São Cinamomos? Não tenho certeza. Autóctonos ou trazidos pelos imigrantes? Nem ideia. Basta começar a escrever sobre algo para ver o tamanho da minha ignorância. Sempre associei o termo Paraíso à sombra fresca, sem manchas de sol, com que a copa dessas árvores protege uma calçada do calor. A como seria uma sombra no paraíso.

Acudo ao Antunes por telefone e com ele aprendo que a realidade não tem nada que ver com as minhas associações poéticas. As árvores da Silveira Martins são Tipuana Tipu, a Tipa, nativa daqui, não do Uruguai, esclarece ele. O que me deixa pensando em como é possível uma árvore ser nativa de Sant’Ana sem ser de Rivera. Decerto vieram do Norte do Estado. Daí o argumento furado usado por um especialista entrevistado no rádio para reforçar as justificativas de corte que as árvores nem daqui são. Como se a Tipa fosse uma espécie de capim Annone ou de carpa predadora que acaba com a diversidade.

Os Paraísos ou Cinamomos sim, diz Antunes, vem da Ásia e, ao contrário da carpa e do Annone, foram muito cultivados por resistir aos predadores, no caso, os gafanhotos. Quem sabe o tal entendido quando falava no rádio: - Nem daqui são! confundia, como eu, a Tipa com o Cinamomo. Tá explicado.

Mas não é só por isso, prosseguia o moço no microfone. Está a questão dos fios elétricos e das calhas entupidas pela folhagem. Que o porte das copas esconde as fachadas comerciais e escurece as janelas das residências, que as raízes são agressivas e levantam as calçadas (fez lembrar um verso do pai, o joanete das raízes nas velhas calçadas), que pela idade e falta de manutenção adequada a maioria dos troncos está carunchada, que pela violência das tormentas (sim, até o el Niño entrou na conversa) os galhos quebrados ameaçam os automóveis estacionados e os transeuntes... Só faltou dizer a verdade, estamos cortando porque eu quero e pronto. Ou melhor, porque a Cia. da Luz quer. Ou melhor ainda, porque ninguém se importa, ninguém dá bola.

Já o meu problema é outro. O meu problema nestas últimas manhãs tem sido ir da 13 de maio até a Conde de Porto Alegre para buscar o Opala sem ouvir a motosserra acabando com vidas que ali estiveram por quase 100 anos enquanto todos, indiferentes, passam em torno.

Hoje, diante da queda de um tronco saudável – não moço, não estava carunchado – aplaudi com tanta altura que o grupo de pessoas, funcionários da rede elétrica e fiscais (da onde, do Meio Ambiente?), envolvido naquilo parou, olhou para aquele indivíduo de camisa aberta, bermuda, havaianas seguido de perto por um velho ovelheiro, e... prosseguiu.

Afastei-me das árvores derrubadas no meio-fio recontando o belíssimo túnel de copas como era aos olhos da minha bisavó. Assim, visto lá de cima do cerro da linha, 15 por calçada, 30 frente à frente. Da Tamandaré à Flores da Cunha, 250 Tipuanas parelhas, frondosas, com raízes enredadas. Toda uma herança afetiva. 



Quantas sobram? Melhor nem saber. Vejo os buracos de céu onde estavam as copas e penso no resto daqueles troncos morrendo também debaixo da calçada, a seiva secando entremeada com as raízes ainda vivas das vizinhas que foram poupadas. Meu sentimento não é só pelas árvores. Elas remetem à outra desolação que nem o suave prazer de ouvir o motor sereno do Opala navegando comigo e o cão para longe da Silveira Martins atenua. A desolação de uma cidade habitada por bárbaros inocentes incapazes de preservar a sua arquitetura, a sua história, o seu patrimônio vivo.


É uma distorção, na verdade. Se o cara com a motosserra visse cada árvore como um ser único não as cortaria. Se tivéssemos reverência pela vida de uma formiga, do musguinho na pedra, do abutre, como trataríamos nosso semelhante? Dirijo engolido pelo vespeiro das motocicletas pensando além dos antigos, também cortados, plátanos da Sarandi... Pensando no cordeiro, no boi, no javali. Não somos carnívoros. Canibais é o que somos.


Comentários

Marlon Aseff disse…
Texto ao mesmo tempo inquietante e urgente. Inquietante porque nos deixa atônitos frente aos relatos de poda indiscriminada, onde a sociedade não é chamada a opinar, apenas assistir a uma espécie de crime ecológico e urbano. Aliás, onde está a cidade, onde estão as pessoas? Urgente também pela denúncia do que está e do que poderá vir a ser, do nosso patrimônio histórico, dos nossos casarões centenários relegados a uma noção arcaica de "utilidade". Socorro intelectuais e gestores públicos, promovam um amplo debate, vamos colocar os estudantes nesse diálogo. Qual é a cidade que queremos? Porque senão será tarde. Não há nada mais agressivo do que a suavidade da indiferença.

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