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Os Processos Analógicos I de Juliana Freitas no Braguay

     

A impressão inicial é que para cada foto de Juliana Freitas há uma série não exposta. De paisagens e crostas, de cercas e árvores, de folhagens e pedras. Nelas, a ambiguidade é quase uma linguagem, sempre desdobrando a cena em outras. Talvez por causa das camadas de leitura, talvez por deverem algo à pintura, ao cinema e à poesia, são antes ensaios visuais que fotografias. 

A imagem, que nunca muda diante de nós, age sobre o olhar movendo constantemente seu ponto de vista. Isto ou aquilo? Folhas ou pássaros? Melhor ainda, isto e aquilo. Junto, mas não ao mesmo tempo. A magnólia.





A aérea de um litoral ou a casca de uma árvore?



 

Um pintor recorrendo as 21 molduras expostas nas três paredes da galeria tem sua atenção atraída para a gama de tons monocromáticos. E pensa, não tem como evitar, em ismos.


 





Expressionismos





Minimalismos



 





Abstracionismos



Os aramados com pasto enredado da Florentina são linhas sem deixar de ser aramados. Logo a cerca se sofistica pelos fios da rede elétrica e a primeira dimensão afunda fora do foco. Todo um jogo de planos.

Em closed, por um momento de nada, o cactus é uma boca de inferno, um ralo de abismo. E draga o olhar fixo. Composição e textura. Mandala.





Mesmo a figura mais nítida é dúbia. Seria uma montagem, uma miniatura? Um farol ou uma capela no pampa? O que é real importa menos. 





O pagode sobre a rocha parece um mausoléu. Talvez haja ali até uma mesa de sacrifícios construída por hereges no tempo das Missões. O pintor divaga diante da foto acusando a tensão criada pelas medidas do pequeno quadro – 11 x 8 cm – e a vastidão que ele contém. Vê uma paisagem muito mais antiga que a fotografia.

Já um cineasta que passeie pela exposição é atraído antes pelos stills. E reconhece o momento em que no movimento a imagem foi congelada. Sabe da luz da tarde e do vento, se é outono ou se está seco, no verão. Pensa nas dezenas de fotogramas descartados antes e depois do que foi escolhido. O cineasta lembra, claro, de Tarkovski e as suas miniaturas majestosas. Reconhece também a melancolia do russo que vibra na mesma frequência de cinza, grafite e chumbo trabalhada por Juliana mais tarde, no estúdio. Alguns enquadramentos lhe parecem ser o resgate de algo perdido. Uma perda, na verdade, capturada.









Por sua vez, o visitante que escreve versos identifica nas paisagens um estado em suspenso que lhe é próximo. Vê em cada cenário atemporal um poema elaborado sem palavras. Quero dizer, o ar da poesia. Associa as variações da mesma imagem exibidas por Juliana aos seus próprios rascunhos. E neles, nas faixas de luz de cada esboço, o tratamento não decidido para cada tema. O fim sempre em suspenso.

A longa duração que o branco evoca e o presente imediato do negro. Assim, os pinheiros se movem agora ainda


 







enquanto no umbú a tarde vai, barra a barra, anoitecendo em um único instante através da paisagem. O dégradé expondo a tona do espaço e a sua profundidade, a passagem da claridade através de um dia ou de uma década. 







O poeta pensa no processo de assimilação. Quando o seu silêncio se torna o mesmo do panorama em frente. No vislumbre e o click. Nas 36 poses contadas do filme no tubo x a vasta memória das câmeras atuais. Pensa também, é evidente, nas horas de trabalho, nas inúmeras revelações que perseguem a revelação intuída, a ideal, jamais alcançada. E sabe, justamente, que a beleza está na processo.

O recurso analógico no lugar da tecnologia digital é aqui, mais que preferência estética, uma questão de retomar o contato físico com as etapas criativas. Parece que apenas no quarto escuro imagens com uma carga emocional tão íntima, e paradoxalmente tão impessoais e anônimas, seriam traduzidas como Juliana pretende. Com esse peso e densidade.

As apropriações da pintura, do cinema e da poesia neste trabalho elevam, em tempos de banalização extrema da imagem, a fotografia a um outro patamar. Aquele em que o fotógrafo se torna artista. Há algo desolador na natureza recriada nestas imagens. E solidão. Quem conhece a autora pessoalmente percebe que não a conhecia assim, como a Mostra a exibe. Feita para durar.












Resta aguardar os Processos Analógicos II. E celebrar. Braguay, Maria Luísa e Leonidas, como sempre, inestimáveis.

p.s.
As fotos acima, tiradas por um celular, não alcançam nem de perto o efeito dos originais. Nada substitui a visita à exposição. Saiba mais sobre googlando Juliana Freitas por Amanda Ziani. 



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