Golfe do = o caminho do golfe
L. Verdi
L. Verdi
Uma das mais poderosas experiências que alguém pode ter em um campo de golfe é jogar com a sensação de ser conduzido por uma força externa ao swing. Algo que torna o golfista um instrumento da batida. O voo da bola encontra a linha uma e outra vez apesar do contato não ter sido preciso. A caída atrai a corrida até o buraco por atração magnética. Sei que parece irreal. Quem é objeto dessa ação (note a inversão, ser o objeto de uma força que se pressente) recua para o fundo de si mesmo para permitir que só o corpo bata na bola. É certo que o golfista deve estar treinado, mas o treino não tem nada que ver com o que tento descrever. Ninguém treina o estado de graça.
Isto posto, devo dizer que nunca antes nos meus 40 anos de golfe, estive
no paraíso e no inferno ao mesmo tempo como ontem durante toda a volta final do
Aberto de Duplas em Rosário do Sul. Amanheci com uma ressaca de gin tônica para
o fígado e vinho tinto para as têmporas que resistia aos dois analgésicos
preventivos da madrugada. Até uma hora antes da saída o capacete bombava. Tomei
uma terceira e capital pastilha. Tinha sido uma estranha manhã. Sem que eu
pretendesse, várias notas do meu “Diário de golfe” insistiam em passar pela
minha cabeça. E não eram auspiciosas.
Parei na bola no tee de saída e abri o stance. Luis Silveira, o Baca,
meu parceiro, diz “- Ué, fadezinho hoje?” para a bola alta, cortada no meio da
raia. Lembrei da nota sobre os dias do corpo...
(...) quando ao aquecer na zona de prática antes de uma partida,
bato melhor retas ou fades no lugar do draw costumeiro. Quem recorre a apenas
70% da potência raramente corre o risco de desmonte sob pressão.
O drive havia deixado a bola a 80 jardas da bandeira do 1. Tenho que
parar de ouvir as notas, pensei. Luis errou o seu segundo tiro pela direita.
Mirei o centro do green. Levei o 54 lento demais e... papa.
Em um torneio, muitas vezes, as mais importantes tacadas acontecem nos
primeiros buracos. As de afirmação.
Bela tacada de afirmação a minha! A modalidade é best ball e salvamos o
par. Luis embocou o birdie no segundo buraco. Subimos ao tee elevado do
terceiro, um par três de 150 jardas reto afunilado pela copa dos eucaliptos com
vento norte cruzando a favor. Estou com o ferro 8, espero a vez de jogar olhando
o coco da cabeça do Robinho, caddie do Osiel, golfista da outra dupla. O coco é
de recruta, lembra o do Pelé na copa de 58. Pelé não pode agourar, Pelé é o meu avô Thomazinho torcendo. Bom, ou preteia, ou ilumina. Baca bateu e eu descabelei com as duas mãos aquele bombril
como pude. O guri tomou um susto e deu um pulo. Fui pra bola, fiz o swing e o
resto é história.
A cara de susto foi ainda pior quando, no meio da gritaria, eu tascava um
beijo na bochecha do Robinho dizendo - Foi tu guri, foi tu!
Se a tacada é perfeita, não a sinto minha. O erro sim, é sempre meu.
Para mim ali tinha sido a moleira do Robinho que fez a bola quicar no
início do green daquele jeito amortecido e começado a rolar como um putt que
contorna a caída em arco-íris para a esquerda. O mundo todo parado e só a bola rolava deixando o silêncio maciço na medida que se aproximava da bandeira. Não arrumei a marca do quique. Marca sagrada não se arruma. Olhei a bola no
fundo da taça, o número para cima. Esse foi o terceiro hole in one da minha
vida. Todos com uma bola 3.
Do hole in one até o último buraco uma parte de mim entrou no paraíso. Jatos de
adrenalina reviviam a tacada perfeita a cada abraço recebido dos golfistas, dos
caddies e da assistência através do campo. Da mesma forma, cada novo acerto mantinha presente a graça no swing. Por toda a
tarde draivei suave, amplo e distante.
O drive ecoa a curva da terra.
Talvez fosse da ressaca, a minha incapacidade em concentrar e estar tão vazado, pensando nas minhas próprias citações. Nunca me pareceu tão verdadeira a frase sugerida pelo Frenette para a epígrafe do Diário
O drive ecoa a curva da terra.
Talvez fosse da ressaca, a minha incapacidade em concentrar e estar tão vazado, pensando nas minhas próprias citações. Nunca me pareceu tão verdadeira a frase sugerida pelo Frenette para a epígrafe do Diário
“... and the
sky is bright or dark, according to the state of the game.” (Sir Walter G.
Simpson)
Quando eu fazia um swing completo, o céu era de luz sobre o campo. Pelo
menos até o approach seguinte. A sucessão de abandonos, tapadas, papas e
filaços que cometi ao mirar a bandeira dali em diante é dura de narrar. Mas
servem para entender como o golfe é capaz de provocar aquela ubiquidade
emocional por mim referida acima. Estar no paraíso e no inferno ao mesmo tempo. The sky
era bright enquanto eu draivava ou caminhava para a próxima tacada, mas
escurecia nem bem eu parava na bola diante de um green.
O fato é que, da perspectiva do escore, o hole in one não é mais que um
eagle. Estamos liderando, mas temos ainda muito por jogar. No 8, com o
Luis na água e uma meia bola minha cuspida fora dos limites do campo devolvemos
com um duplo o eagle para a cancha.
Cair na bola nos approaches faz com que eu comece a patear
de fora para fugir das papinhas ao redor dos greens. Luis segurou o rojão com
putts firmes e personalidade. Por vários buracos jogou sozinho sem
entender se eu estava eufórico, gelado ou se a terceira pastilha anestesiara
minha consciência corporal. Talvez um pouco dos três. No fundo, eu sabia que é possível competir mesmo sem swing e que aquele estado de graça era capaz de assegurar o resultado, apesar dos falseios.
Cometi sem saber bem como mais algumas mágicas no percurso, talvez por efeito residual. Um putt da entrada do 10 que serpenteia por todo o green para parar atrás do buraco e cair de costas, uma lenta embocada de fora descendo a morrer até engasgar presa entre mastro e o gargalo da taça no 14 e, uma das tacadas mais difíceis que já dei na vida, a do segundo tiro do 18, um wedge de 60 jardas para a bandeira. Eu que só pensava no filaço, testemunhei de fora o meu corpo insensível pela insegurança deixar a bola dada para uma injusta ovação de chegada ao último buraco.
Ainda do "Diário de Golfe"
23 de junho, 2000
Para cada swing há um lugar de falseio. Joelho de borracha, quadris
oscilantes. O colapso do swing que desmonta na tacada decisiva é a pior
experiência do golfe.
e
13 de julho
Há momentos em que a voz diz o que espero sem pensamento prévio, tornando-me um ouvinte de mim mesmo. E há momentos em que o swing é executado por um corpo quase autônomo, com uma naturalidade alheia, conduzida pela minha ausência.
e
13 de julho
Há momentos em que a voz diz o que espero sem pensamento prévio, tornando-me um ouvinte de mim mesmo. E há momentos em que o swing é executado por um corpo quase autônomo, com uma naturalidade alheia, conduzida pela minha ausência.
Não
depende da vontade. Três séculos antes de Cristo, Lu Chi diz (sobre a
inspiração): “Quando vem, nada há que a detenha / Quando vai, nada há que a
contenha”.
De
modo que a disciplina consiste em estar pronto, preparado para essa
manifestação da impessoalidade através de mim.
Não
há respostas porque não há perguntas. É um estado de simplificação.
Uma
sequência de acertos induz ao acerto seguinte, em corrente. O corpo é levado
pelo swing, por assim dizer, pela sensação de que tudo conspira a favor.
Trata-se
de alongar o mesmo instante através da volta, de manter um único momento
continuado por toda a tarde.
Pois no último domingo vivi o que de melhor e de pior pode ocorrer a alguém em um campo de jogo. O inusitado foi ter sido ao mesmo tempo, na mesma ronda. Golfe.
Parcial do escudo do Hole in one do Rosário Golf Club, toda uma honra.
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