Ontem venceste um dos Abertos do circuito gaúcho contra o melhor golfista da história do campo. (Camelo fora. O Camelo é hors concours.) E eu te escrevo esta carta porque não tenho certeza se valorizas o tamanho do teu feito. Não sei se tens a perspectiva para medir o quanto alcançaste desde que saíste do bairro. E, o mais importante, o quanto ainda tens pela frente.
É um feito fazer jogo com o Glauco. Sei que já jogaste com um número suficiente de bons golfistas para avaliar a qualidade do cara que bateste ontem com um birdie de cinco passos pateado seco na borda de dentro do primeiro buraco do desempate. Falo da capacidade inata de repetição do contato que o Glauco tem. Do mesmo contato no drive, no ferro e no putt. Esse ponto doce solto e cheio que as suas mãos dão ao impacto. Solto e cheio, repara nisso. O swing do Glauco é todo elástico, fluido e sensível. Perto dele o teu swing parece um robô enferrujado.
Sim, o teu swing é a parte defeituosa do teu golfe. O teu swing é uma mola rangendo ao contrário que projeta um voo limpo na esquerda certa dos alvos. Tu não nasceste com ele. Tu o forjaste, pedaço a pedaço com esforço e paciência. Ou foi ele quem te forjou a ti? Não importa. O que importa é a beleza do voo da tua bola. E embocar como fazes, naturalmente. Pode que penses que eu esteja te ofendendo. É porque não sabes da liberdade que há em não se importar com a estética do movimento. Bonito, feio, meia boca, que importa... Quando assumimos quem somos tudo se simplifica.
Vê. Um swing só é belo se for natural. Perseguir a elegância é perda de tempo. Quando não se tem a graça deve-se buscar a eficácia. No fundo do acerto existe outro tipo de força. A da realidade. A do voo das bolas.
Glauco Righi é importante pelo contraste. Mas, ao fim e ao cabo, ele não passa de um coadjuvante diante da cancha mais traiçoeira do circuito gaúcho de golfe. É claro que jogar com ele nela a torna ainda mais claustrofóbica, por que ele executa com os olhos fechados tiros que, para os de fora, exigem esforço, imaginação e manha.
Gosto de pensar, ao ver Glauco jogar, que é a cancha que joga através dele.
Desconfio que muitos dos excelentes golfistas do Norte do Estado que não visitam Rosário desconhecem o quanto estes fairways preservam tacadas clássicas, praticamente extintas do repertório dos campos construídos nas últimas décadas. Tacadas que requerem a ação da articulação (pressão dos joelhos, munhecas vivas e quadris agindo). Meios tiros de 80 jardas que cravem no green depois do terceiro quique. Curvas baixas, rasantes decolando no meio do voo, linhas em frestas com quedas mortas... O lie saibroso pede contatos justos no meridiano da bola contra o chão firme e escorregadio. Sem precisão de toque não se compete lá.
Dirão que basta bater reto para evitar essas tacadas. Sim, em teoria sim. O problema é bater reto sem parábola. Os corredores desde os tees impedem as grandes curvas, quer dizer, nada de parar na bola com o stance aberto e largar aquele fade amplo que cai no meio depois de voar no limite da raia, nem o drawzão que volta de cima e quica para a frente acelerando no terreno duro. Nada disso. O drive é flechada. Adiantou a cadeira e estrelou o cacho de pinhas do galho da direita, tapou o impacto e atravessaste dois fairways longe pela esquerda. No primeiro caso, a bola está no tapete de agulhas e a raia afina como um telescópio ao contrário entre as árvores que cresceram sobre ti de repente. No segundo, terás dois muros paralelos de ciprestes até um alvo oculto, um green cego, onde não se vê nada além da iminência do desastre.
É um campo digno, esse de Rosário. Um campo com a pressão de nó cego em quem o enfrenta sem ter tido o tempo devido para incorpora-lo. Um campo que não dá nem perdoa nada. Só toma. E é assim até que depois de anos voltando a ele para perder, te entregas ao martírio e te dizes enquanto diriges a reta sem fim da 101 –Vou penar em Rosário! Então, só então, se relaxas e te entregas pode ser que comeces a bater na bola lá.
E é por isso que te escrevo esta carta aberta. Para que todos que a leiam tenham, através do que te digo, outros olhos para o que é distante, difícil e diferente. E para que entendas que apesar do desmonte que o teu swing sofreu entre o 12 e o 15 de domingo conseguiste uma façanha: vencer o Glauco em seus domínios.
O fato Nenê é que qualquer um joga caçando. Poucos sabem jogar de lebre. E quando tiraste duas de vantagem tua nuca e tuas orelhas viraram um camarão. Não estavas no teu próprio escore. Estavas no escore do outro. Duas à frente do outro. Isto faz com que cada tacada certa de quem te persegue invada a tua e que cada erro teu incentive a próxima tacada do teu perseguidor.
Pensemos na situação que enfrentaste no 15. Par 4 reto e curto. O mais traiçoeiro do campo. Bateste um ferro 5. Sentias tanto a pressão de liderar que o fade perfeito e controlado com que chegaste dois dias atrás entortou como se vê lá embaixo, na foto do Olivério.
E se não recordo mal, entre teus 13 e 15 anos, lutamos juntos com o Baca para corrigir o giro plano, por baixo do ombro, que fazia com que compensasses na passada dessa maneira. A tensão de liderar a quatro buracos do fim fez com que recuasses ao primeiro molde. O corpo fugiu para onde se sente protegido, para a infância.
Essa saída foi quase na vara, a milímetros do shank, e abriu fora do estreito fairway. E o que fez o Glauco? Glauco draivou ao green. Um suicídio desesperado de quem vem duas atrás e quatro a jogar? Ou um suicídio encenado? A bola caiu na lagoa que protege o ante-green.
Qual a situação? Glauco na água e tu com a sorte de ter o green livre para um approach das 80 jardas. Adrenalina. Parecias um pimentão. Vazaste a linha da bandeira e tua bola parou no fundo do green. Glauco dropa e joga a terceira a embocar de atrás da lagoa. Quase emboca e faz o par. Tomas 3 putts e vês a vantagem diminuir para uma. No 16 erras o drive e fazes outro boguey. O jogo fica pau a pau no tee do 17.
Do nada tua expressão muda. A respiração se normaliza. Perdes aquele vermelhão que tinhas enquanto lideravas. Não és mais lebre. Agora és o de sempre novamente. E o que acontece é qualquer coisa de encantamento. Glauco joga seu segundo tiro à bandeira desde as 70 jardas e a bola quica a um palmo do buraco, rola e pára a uma jarda, ou menos. Qualquer um diria que o jogo terminou.
Estás a 60 jardas, na lomba, lie duro, lagoa na frente e ladeira abaixo na partida. Arco pausado e suave, contato justo, tiro perfeito.Tua bola pára a dois dedos na linha do buraco. Dois dedos!!! E quando vocês saíram do 18 empatados ao play off eu cá comigo sei que foi esse o tiro do torneio. A tacada do campeão.
Terminando. Escrevia eu estas linhas quando publicaste umas palavras a nosso respeito na rede de amigos online. Eu fiquei com vontade de te perguntar: se tivesses perdido terias a energia para retribuir minha atenção com teu carinho?
Pensar que não, que não a terias, fez com que me decidisse em publicar também estas notas. Porque é algo que falta, isso de ter afeto na cancha quando se joga. Se tivéssemos mais ternura na derrota não competiríamos contra o fracasso, nem despertaríamos através da competição os instintos mais primitivos da sobrevivência. Ser galgo ou ser coelho. É mais fácil caçar do que ser caçado. Só quando entenderes que no golfe o que importa é o voo da bola poderás aliviar a pressão com o swing e não submeter o swing à pressão do jogo. Isto é algo para ser entendido desde cedo e que deveria ser prioridade na formação dos golfistas que pretendem dominar o ofício. Bater na bola é melhor que ganhar.
E tu Nenê, bates bem.
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Sandro Gonçalves Tavares, o Nenê, é um dos principais amadores do país.
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