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A tradução no escuro


         

            Traduzir poemas ao português, no meu caso pessoal, sempre foi uma atividade decorrente da leitura. Elaboro versões para ler melhor e, ainda que de maneira derivada, para incorporar o poeta estrangeiro repetindo as etapas formais da sua criação. Não pretendo refazer o poema literalmente daquela para esta língua. Dependendo do caso, tomo pequenas liberdades. Muitas vezes parece-me que para aproximar a versão do seu original devo afastá-la em algo dele. É certo que quanto mais perto da frase estiver o verso, com mais literalidade será vertido. Versos fraseados, de um modo geral, podem ser copiados, enquanto versos medidos devem ser recriados. Digo isto porque para mim escrever poemas é uma atividade lenta e minuciosa que rara vez se resolve num repente. Ou melhor, há na minha escritura, geralmente quando o poema surge e quando acaba, instantes de inesperada claridade separados por uma longa e trabalhosa gestação. É natural, portanto, que eu prefira traduzir poemas que guardem mais distância da prosa, que tenham versos concisos, como se essa redução de meios pudesse - ainda que em falsa impressão -  condensar a potência da poesia. Falo por afinidade, por inclinação, mais na direção de Ungaretti, Montale ou Emily Dickinson que de poetas como Michaux ou Pound, para citar algum exemplo.

            Por outro lado, referindo-me ao poeta que segue abaixo, explorar um idioma através da tradução de poemas é um refinamento que no caso de Wang Wei eu não pude experimentar. Não leio este clássico no original. Somente tive acesso a ele através das versões em espanhol, italiano, francês, inglês e, evidentemente, nas do meu próprio idioma. De modo que, para compor o meu poema de Wang Wei, sou obrigado a esboçar primeiro um rascunho baseado no que cada uma dessas versões em diferentes idiomas têm em comum. Através desse processo, identifico também quando e onde os tradutores foram fiéis ou ousados. Para dar um exemplo exponencial, Haroldo de Campos é tão vivo e criativo como tradutor/poeta em seu “Escrito sobre Jade”[i] que não posso usá-lo como fonte, uma vez que suas soluções são originais em si mesmas. Já em casos em que a tradução é feita a quatro mãos com um nativo, geralmente um professor de literatura chinesa, é fácil notar quanto da improvisação do tradutor é inibida pelo comprometimento com a literalidade superficial que muitas vezes restringe sua versão à uma mera peça narrativa.
           
            O interessante de reescrever um poema escrito em ideogramas através das suas mais variadas versões - das literais às logradas - é justamente a ampla margem para criar um poema novo que remete ao sentido original mas que não tem palavras específicas para refleti-las. Pois traduzir ideogramas, nunca é demais reiterar, compreende traduzir não de um outro idioma mas de uma outra linguagem. Em outros termos, a sensibilidade poética do tradutor deve reconhecer e apreender a sensibilidade poética do autor e tentar encarná-la. Escrever um outro poema com a mesma poesia.




Wang Wei 

Shanxi, 701- 761






Risposta al Magistrato Zhang 

Resposta ao juiz Zhang


Vecchia età / amare solamente quietudine 
Idade avançada / amar só quietude

Miglaia cose / non turbare cuore 
Milhares coisas / não turvar coração

Valorare / mancare troppo risorse 
Valorizar / faltar demasiado recurso

Vano sapere / tornare antico bosco 
Em vão saber / voltar antigo bosque

Pini brezza /soprare svestire cinta 
Pinheiros brisa / soprar desatar cinto

Monte luna / illuminare suonare citara 
Montanha lua / iluminar tocar cítara

Signore domandare / tutto apprendere vero 
Senhor perguntar / toda aprender verdade

Pescatore canto / penetrare canneto profundo 
Pescador canto / penetrar canavial profundo



Tradução literal em italiano, por Vilma Contantini, Coppe di Geada, Ed. Torinese, Torino, 1985.


                                           *


La Dicha


Soy viejo, nadie tiene halagos para mi

De ingenio corto, nunca tengo una idea feliz

y fuera de mi selva ni un palmo conoci.


Los azulosos dedos de esta luna de abril

en mi laúd se enredan y un viento danzarín

se olvida de las nubes, me intenta desceñir.


Cuál la suprema dicha, me preguntais a mi?

Pues escuchar el canto de una niña gentil

que preguntó el camino y sigue, hasta borrarse en el confin.



Guillermo Valencia, em Poesía China, Ed. Continental, Buenos Aires, 1944.


                                          *


Respondo al Prefecto Zhang


A medida que pasan los años mi espíritu se serena,

liberado de las diez mil preocupaciones.


Me pregunto a mi mismo y ya sé la respuesta,

Hay algo mejor que el regresso al hogar?


El viento en el bosque de pinos agota mi túnica

y mi laúd se argenta bajo la pálida luna.


Te interessa saber en qué consiste la buena fortuna?

En la orilla distante, un pescador sigue cantando.



Guillermo Daniño, em Hiperión, Madrid, 2004


                                    *


Al Prefecto Chang


Mi otoño: entro en la calma,

Lejos el mundo y sus peleas.

No más afán que regressar,

Desaprender entre los árboles.

El viento del pinar abre mi capa,

Mi flauta saluda a la luna serrana,

Preguntas, qué leyes rigen éxito y fracasso?

Cantos de pescadores flotan en la ensenada.



Octávio Paz, em Versiones y Diversiones, Galaxia Gutemberg, Barcelona, 2000.


                                        *


Em resposta a Zhang, Magistrado


No descer da idade a quietude aceita

As coisas do mundo não encerra o coração

P’ra mim olho sem distante plano

Volta à floresta antiga, conhece o vazio

O vento sopra, no pinho, distende a cintura

A lua dá luz à montanha, toca o alaúde

Perguntar razões de ganho ou fracasso -

Toada de pescador entra na margem funda.



Gil de Carvalho, em “Uma Antologia de Poesia Chinesa”, Assírio & Alvim, Lisboa, 1989.


                                               *


                      RESPOSTA AO PREFEITO ZHANG



                                Perto do fim vivo sereno

                                Já medi os meus limites


                                Retornar é o que desejo

                                Esquecer entre os pinheiros


                                Meu cinto flutuando na brisa

                                O alaúde ao luar na montanha


                                Perguntas qual a verdade suprema

                                O assovio do pescador na enseada


                                                                                     Thomaz Albornoz Neves





[i]Escrito sobre Jade, Poesia Clássica Chinesa Reimaginada por Haroldo de Campos. São Paulo, Ateliê Editorial, 2009.

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