Moro de favor faz alguns meses numa das tantas casas de praia prensadas entre a Via Ardeatina e o Mediterrâneo. Cheguei no começo do outono e devo partir antes do próximo verão. A Signora Vittoria é grata por ter alguém aqui durante os meses em que o balneário fica deserto. Ainda espero sua visita. Depois de ter vivido tanto tempo ilegal, a matrícula no curso de cinema abriu meu visto por mais dois anos. Três dias por semana tomo o primeiro ônibus matinal, percorro 40 kms pela Litorânea até a ferrovia de Ostia e retorno de Roma no último trem, justo a tempo de fazer a baldeação da meia-noite para a praia. Não pago a escola enquanto participar da organização do acervo filmográfico. Mas escapo sempre que posso e passo o fim das tardes na Biblioteca Nazionale fotocopiando por pouco mais de nada todo livro de versos que cai na minha mão. A comida e o transporte me custam menos de cem dólares por semana, o que garante até o verão sem ter que trabalhar. Não tenho expectativa alguma além de o presente passar tão devagar que o verão romano não chegue nunca. Este início de inverno tem uma lentidão própria, nova para mim. Apesar de cada dia ser mais curto, a jornada parece dilatada pelo meu recolhimento. Tenho a impressão que não falar com ninguém converge para a escrita a força das palavras. Já não evito pensar em italiano para tornar o português um idioma mental exclusivo da poesia. Tomo um café cedo e trabalho até a meia-tarde sem que meu foco seja vazado pela vida prática. Quebro o jejum aquecendo no forno pão dormido com manteiga ou azeite de oliva e saio para correr com Paco. Quando o mar está calmo, Paco se anima na faixa de areia molhada, cheira a onda sem espuma se ela vem e a persegue se ela volta. O mediterrâneo é um beco gris de céu baixo que me provoca um pesar recorrente. Toda vez que desço ao Lido de Lavinio, a memória do pampa e da vastidão do Atlântico condenam a farsa deste exílio, sua ilusão de só poder encontrar o que procuro longe do que conheço. Ao voltar pela avenida com a cachorrinha solta ao meu lado, me sinto o único morador de toda Ardea. Eu e um velho de costas para o mar apoiado em uma muleta. Paco corre em sua direção, ele a toma nas mãos e se apóia no muro de contenção da beira-mar. Brinca de escondê-la deixando sua cabeça aparecer entre os botões do sobretudo. - Parushski, me pergunta, devolvendo a cachorrinha ao chão. Ao que eu – Niet, niet. Parlo italiano. – Da, diz ele. Fima, e aponta o polegar ao próprio peito. - Thomaz, respondo, divertido por encontrar um russo para conversar depois de três dias sem ter com quem falar. - Ah, tomaích, yá. - E... apontando para a cadelinha, - Paco, lei si chiama Paco. Ele me diz algo que não compreendo sobre a torre em ruínas do promontório. Tor Caldara, respondo, mas não nos entendemos. Para puxar assunto menciono a queda, anteontem, do muro de Berlim. Ao que ele: - Gorbachov! Cospe no chão esmagando com o pé vivo até deixar nada do cuspe, nem para a Paco cheirar. Mostra a estrela de Davi na corrente do pescoço, como se fosse notório o anti-semitismo do presidente. Fico sem saber o que dizer, mas ele impede que eu me despeça apontando com simpatia o dedo para a minha orelha. Eu atento. Seu assovio claro e afinado melodia Nessun dorma. Na medida em que alcança o crescendo de ma il mio mistero é chiuso in me minha atenção se torna reverência. Então conto de mim e do que faço, para o seu desgosto. Fima se esforça para me fazer entender que jovem algum deveria viver sozinho num balneário vazio e aponta para a Paco fazendo careta como se eu merecesse companhia mais, digamos, humana. Para ilustrar, retira do passaporte fotografias soltas da mulher morta no Mar de Azov e me mostra o carimbo que demonstra estar em uma quarentena alfandegária para emigrar ao Brooklyn, onde alguns dos parentes das fotos, também expurgados, o esperam. O vento do entardecer nos faz deixar Tor Caldara para trás, na direção da Piazza Lavinia. Sobre o silêncio do meu andar ouço o passo da perna de pau e o taco sem borracha da muleta. Fima me coloca no devido lugar na escala dos exilados. A casa em que chegamos está duas quadras antes da minha e foi alugada pela embaixada. Faz um gesto para que eu deixe Paco na varanda e me convida para entrar. Sua neta, Olga, está cozinhando. Olga é a mulher mais branca que já vi na vida. Dura, de giz. Mais tarde, quando lhe toco a pele escamosa, me vem a palavra "ofídia". Mas seu incisivo todo dourado quebra essa aspereza com um clarão na irrealidade de cada beijo. Irrealidade do meu olhar sobre minha própria vida que aquele dente de ouro assombra. Quando faço seu retrato, é a secura da sua pele na minha solidão que eu tento pintar.
A judia russa de Lavínio Mare, Ardea, guache em cartolina, 1989.
Comentários
Quanto beleza nesse texto!
Para o próximo PORTO, também esperamos tua poesia.
Um abraço,
Eliane