O green de terra preta batida ressurge aos meus olhos no momento em que Tintim crava a bandeira no meio do campo e simula para a câmera no meu ombro o buraco do extinto 5. Caminhamos desde um tee imaginário por um fairway apagado pelo tempo, filmando o percurso original da Armour Course. Tintim e Parafuso dão a cacimba do 1 ou a castanheira do 7 por testemunha do que havia em torno e, em um piscar de olhos, a velha cancha fantasma passa pela paisagem. O bosque de eucaliptos volta ao coração do circuito e o parque de arborizados corredores que agora percorremos é somente várzea, pastagem. A parelha de mulas arrasta seis metros de lâminas rotativas e desenha o traçado que sobe, desce e contorna as coxilhas. Um jovenzinho espanhol, de sobrenome Gonzales, conduz o corte do platô superior onde será construído o Club house até o limite alagadiço do banhado do Arroio da Carolina. Houvesse por estas bandas algum pintor de paisagens e a cena estaria à óleo em uma das paredes da sala dos troféus. Sua cancha já nasce íngreme e sinuosa, acompanhando o volume e o movimento das bacias, com ondulados greens circulares situados sobre as plataformas naturais do terreno.
Parafuso era guri e os roughs laterais tinham tanto pasto que, muitas vezes, não o deixavam procurar as bolas por causa das cruzeiras e corais venenosas. Eram controlados a fogo, ele conta com um gesto amplo, e eu vejo as chamas no pastiçal correrem em linhas iluminando os fairways ao cair da tarde.
Tintim ceifava os roughs para as vacas do pai dele quando viu um paisano de bota e bombacha vindo na direção da bolinha que picara no campo ao seu lado. Pensou que era um gaúcho, mas corrigiu-se, gaúchos não falam desse jeito, nem usam essas meias compridas por cima das calças que de longe pareciam botas. Apontando o lugar exato do 1 onde há mais de 70 anos ocorreu o encontro, Tintim recorda que depois do Mr. Stoutt acertar o approach ao green, lhe deu por imitar com a foice o seu swing. E que talvez por conhecer o seu pai mais que pela qualidade da imitação, Mr. Stoutt lhe convidou a ir mais tarde ao escritório da Companhia. Assim recebeu os primeiros tacos emprestados e o convite, tão exclusivo na época, para jogar golfe.
Tintim chegou a 5 de handicap. De acordo com Parafuso, a cancha era tão rústica que não permitia baixar disso. Salvo os excepcionais Mário Braga, nos anos 30, e o Humberto Tejiacchi, nos 50, que chegaram a 3 ou 4. E sairam do fairway do 1 para marcar o green do 3, também visível ainda hoje no elevado platô antes da bacia, ponderando qual dos dois teria sido o melhor se tivessem competido, sem deixar de concordar que nenhum entre os outros golfistas da primeira linha, fosse o velho J. S. MacBey, o Pedro Cepeda, o Ernesto Cabillón ou o Negro Etchepare, os venceria. Bem, pensei, tenho aí uma lista dos melhores entre o final da década de 20 e os anos 50.
Estamos nas marcas de saída das damas do atual buraco 14. Parafuso descreve onde ficavam as caixas com terra e água para os montinhos de barro usados antigamente como tees. Pedro Silva draiva das marcas dos cavalheiros e se aproxima pela taipa da lagoa. Lhe ponho ao par que fazemos a filmagem do circuito do Gonzales, identificando os vestígios da velha cancha na topografia do campo. Dou o exemplo dos valetões abertos para a drenagem que ele conheceu como hazards e que hoje são apenas ondas verdes nos fairways e também daquele retângulo de pasto depois da lagoa do 7 que vira palha na estiagem por causa do saibro da quadra de tênis ali enterrada. É uma busca arqueológica, comparo em tom de brincadeira, tem outro campo debaixo do que se joga agora.
Pedro recorda ter estado em um almoço com Jose Maria Gonzales na casa do Vasquito Cabillón, no início dos anos 50. O mesmo Vasquito cuja bolsa foi dada a um menino franzino de 8 anos, apelidado Parafuso, que agora sorria com a menção ao primeiro patrão.
Pedro, Parafuso e Tintim contaram que, enquanto desenhava o campo, Gonzales conhecera Clara, irmã do Vasco. O imaginei tomado por sua futura esposa e pela cancha que faria, pensando em uma ao estar com a outra, os fairways nascendo assim, sob o encanto desse encontro.
Quem afirma que o destino de certos filhos começa a ser escrito pela história dos pais citaria o caso de Mário Gonzales, primogênito dessa união e maior golfista que o Brasil já teve.
Indago se eles sabem a data de construção do campo e Tintim hesitou. Ele foi feito na mesma empreitada que edificou as avenidas de residências, o prédio dos Solteiros, o Club house, o palacete da gerência, os galpões e a fábrica. Salvo a cancha, que evidentemente não pode ser replicada, as plantas industriais do Armour espalhadas pelo mundo são obras em série projetadas pelos arquitetos de Chicago. Perguntei-me quantas teriam chegado aos dias de hoje. Tintim sabe apenas que a inauguração do frigorífico foi no inverno de 1917. 4 de Julho, daí o torneio comemorativo, afirmaram eles.
Eu sabia que estava coletando um raro depoimento dos últimos remanescentes de um período sem registros conservados, além das poses de praxe, fotografadas em preto e branco ou sépia. Contudo, por mais que a lembrança de um instigasse a do outro na tentativa de reconstruir a época, os personagens e os acontecimentos mencionados são vagos. É como se só nos detalhes o passado estivesse inteiro. Não há um panorama das décadas, apenas cenas soltas sem pano de fundo.
A floresta dentro e em torno da cancha tomada por centenas de caturritas. O banho de sol dos lagartos nos greens do banhado. O mastro de taquara das bandeiras. Os roughs com colas de zorro na altura do peito dos jogadores. O quadro de vidro no corredor da Casa dos Solteiros onde os desafios e o valor das apostas de golfe eram anotados. A roletinha pela qual se era admitido na cancha. A sala de esgrima nunca usada. A biblioteca que só existiu na planta do arquiteto. As duas quadras principais de tênis onde hoje é o campo de futebol do Sina-sina. As calças knickers ou o chá e o bridge das senhoras. Mário Braga com seu bizarro stance de pés juntos, a perna direita indo para trás com a tirada do taco, ou o irlandês canhoto de quem ninguém lembra nada a não ser que jogava toda a volta com as costas do putter. Nenhum sentido para o todo. Minúcias, é o que a memória prefere.
Durante esta tarde eu soube que Parafuso procurava no mato a vara mais reta de sarandi para depois, untada em banha, deixar tostar no calor do fogão à lenha e pregar nela a cabeça de uma brassie quebrada. Que um dos tacos usados para o approach, provavelmente um niblick, era chamado spoon pelos americanos e cuchara pelos castelhanos, que as madeiras tinham apelidos de nariguda ou buldogue, que os ferros de fairway se chamavam mashie ou jigger e que a Companhia providenciava a vinda do equipamento e descontava depois na folha dos funcionários golfistas.
Fui levado ao lugar exato de um temido sumidouro de bolas que foi drenado e não existe mais, chamado “Quadrado do 7” e também onde esteve, nos primeiros anos, o galpão de zinco das ferramentas e a casinha dos tacos.
Conheci quais plátanos e eucaliptos já eram imensos quando Tintim ainda não havia nascido e aprendi que para preparar os greens de terra havia um socador redondo, um pequeno rolo de cimento, um rastilho de cerdas macias e um rodo liso. Que dos greens de terra vieram os de roseta, afinados por uma máquina de corte importada no final da Segunda Guerra. Que para arrancar as ervas daninhas das delicadas leivas transplantadas das várzeas da Charqueada era usado um ferrinho especial com ponta de pua, que as barrancas eram feitas a gadanha e que para evitar que os cachorros do bairro esgaravatassem a adubação feita com farinha de sangue, Parafuso foi vigia de green e passou noites em claro. Noites frias, estreladas e silenciosas, ele conta com o olhar perdido.
Os eventos não conectam. A cronologia é tão esparsa que, ao término da filmagem, penso em termos de eras: a do Armour Golf & Country Club e a do Clube Campestre.
O menino Tintim cresceu, tornou-se comprador de gado para o Frigorífico e, no devido tempo, substituiu Mr. Stoutt na função de green-keeper do campo.
De caddie, Parafuso passou a dirigir o trator que cortava os fairways no lugar das mulas e, na primeira oportunidade, viajou à Porto Alegre para aprender a dar aulas de golfe.
Em 1959, quando Tintim ajudou a intermediar a venda do Armour Club e foi um dos fundadores do Campestre, Parafuso já havia desistido de ser professor e mudado de ofício. A minguada média de quatro aulas por semana não aumentaria nem mesmo com a chegada dos novos sócios. Seria necessária toda uma década e o surgimento da segunda geração de golfistas campestrinos para que a lenta transição do Armour ao Campestre terminasse e o esporte desse finalmente o seu salto na fronteira.
Depois de tudo o que ouvi nesta tarde, sinto-me dividido. É inegável que a passagem dos americanos introduziu o golfe no Rio Grande e que o esforço feito pela comunidade local para preservar tal patrimônio de valor inestimável, cancha incluída, foi facilitado pela Companhia. Caso contrário, o Armour Club teria o mesmo destino do conjunto arquitetônico leiloado, da fábrica demolida por uma empresa sucateira ou das centenas de hectáreas de arvoredo devastadas por loteamentos imobiliários suburbanos. Por outro lado, se penso nos primeiros anos da cancha tenho a impressão de um território remoto sob proteção diplomática, uma espécie de luxuoso pátio em comum ao fundo das residências da 1ª e 2ª avenidas, destinada apenas para os altos escalões de uma Companhia que alcançou empregar, no seu tope, até 3000 funcionários, o que representava 80% do operariado local. Qual charme ianque resiste quando se restringe tão radicalmente o acesso — e penso nas crianças — a um esporte que, ao contrário de alegorizar duelos ou batalhas campais, é jogado contra a natureza e sob o espírito do fairplay?
Que das quatro décadas de existência do Armour não nos fosse legada tradição golfística alguma para honrar e dar seguimento é sintomático daquela mentalidade forânea e segregadora, limitada culturalmente pela imagem do mundo como colônia. Não possuímos sequer o mapa original do campo. Tampouco foi preservado o rol daqueles escassos jogadores, seus handicaps, a grade dos recordes de tacadas do percurso, ou os cartões de escores. E, exceto o belo escudo com os vencedores[i] da Taça “4 de julho”, não há no acervo do clube marcos resgatáveis de outras competições. Perduram apenas os valores transmitidos pelo jogo. Diante do que poderia ter sido, pode parecer pouco. Não é. O essencial nunca é pouco.
______________________________________________________
[i] O Torneio 4 de julho comemorava, no dia patriótico americano, a inauguração da Fábrica e era disputado em modalidade stroke play com handicap. Em seu escudo estão os vencedores entre 1924 e 1955. Não há registro de anteriores ou posteriores realizações do evento.
1924 - W.B. BASSEDAS
1925 - W.B. BASSEDAS
1926 - M.L. COPATTI
1927 - R.H. STOUTT
1928 - C. CABILLON
1929 - S.J. MACBEY
1930 - M.L. COPATTI
1931 - J.E. VAZQUEZ
1932 - H.C. RUSSO
1933 - M. RUSSO
1934 - J.M. BERTOLDI
1935 - A. RODRIGUES
1936 - W.B.BASSEDAS
1937 - J.A. CAMPS
1938 - M. BRAGA
1939 - E. SALABERRY
1940 - M. BRAGA
1941 - W.B. BASSEDAS
1942- S.J. MACBEY
1943 - M. BRAGA
1944 - P.R. CEPEDA
1945 - P.R. CEPEDA
1946 - Não disputada
1947 - “
1948 - “
1949 - M. M. STOUTT
1950 - E. CABILLON
1951 - O. BENTACUR
1952 - A. EGUIA
1953 - J.C. BRENNER
1954 - A. GUERRA
1955 - H. TEGIACCHI
1925 - W.B. BASSEDAS
1926 - M.L. COPATTI
1927 - R.H. STOUTT
1928 - C. CABILLON
1929 - S.J. MACBEY
1930 - M.L. COPATTI
1931 - J.E. VAZQUEZ
1932 - H.C. RUSSO
1933 - M. RUSSO
1934 - J.M. BERTOLDI
1935 - A. RODRIGUES
1936 - W.B.BASSEDAS
1937 - J.A. CAMPS
1938 - M. BRAGA
1939 - E. SALABERRY
1940 - M. BRAGA
1941 - W.B. BASSEDAS
1942- S.J. MACBEY
1943 - M. BRAGA
1944 - P.R. CEPEDA
1945 - P.R. CEPEDA
1946 - Não disputada
1947 - “
1948 - “
1949 - M. M. STOUTT
1950 - E. CABILLON
1951 - O. BENTACUR
1952 - A. EGUIA
1953 - J.C. BRENNER
1954 - A. GUERRA
1955 - H. TEGIACCHI
[ii] O São Paulo Golf Club, fundado em 1901, é o clube de golfe mais antigo do Brasil. Em razão da sua transferência da Chácara Dulley para o bairro de Santo Amaro, o campo original não existe mais. A construção da cancha atual data de 1915.
Comentários