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Conversa com J. Secundino



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Encontrei Thomaz Guilherme, meu amigo de infância, na arborizada casa onde mora e que pertenceu ao seu bisavô paterno, no centro de Sant'Ana do Livramento, entre os dias 14 e 21 de agosto de 2004. Gravei três sessões de entrevistas e as editei para a publicação comemorativa dos vinte anos de O Gato Viúvo, uma revista poética bilingue local criada por Thomaz no verão de 84. Thomaz Albornoz Neves vive hoje com Graciela, para quem escreveu os versos do seu primeiro livro, Renée, também no início dos anos 80. O casal tem dois filhos, quatro cachorros e duas gatas.



I
14 de agosto de 2004

Sobre o que escreves?
Já tive mais interesse em teorizar o que faço. Me custa construir um sistema fechado de pensamento sobre o que quer seja. Penso intuindo, em colagens de fragmentos soltos. Talvez a única linearidade que perceba em mim seja a da banda de fundo, a do silêncio mental entre os focos de raciocínio. Nesse sentido meu pensamento é mais poético que prosaico. Foi prosaico, por força do compromisso, na tese de mestrado, em alguma resenha para revistas literárias ou introdução que tenha feito. E bastou. Mesmo na vida prática sou uma pessoa que reage e que não se prepara em relação às circunstâncias. Às vezes penso em um livro e quando estou diante da estante não sei o que estava fazendo ali.

É uma pergunta vaga não é mesmo, mas serve para começar.

Hoje sinto que quanto mais lento é o meu tempo interior menos exposto estou à aceleração do mundo lá fora, e que, de alguma forma, o que venha a escrever transmitirá a tensão dessa arritmia, dessa diferença entre o pouco que eu considero interessante e a multiplicidade de informações que recebemos a toda hora sobre o quer que seja e que acaba sempre por diluir e relativizar aquilo que me importa.

Entendo. Queres dizer então que teus escritos são autobiográficos?
Sim e não. São autobiográficos porque nascem de um episódio ou de uma impressão que eu tive, mas essa experiência, essa impressão não são o poema. O poema terminado é autônomo e indiferente ao poeta e, nesse sentido, não há nele nada de autobiográfico. O homem do poema é qualquer homem. E é bom não esquecer que a palavra no poema é só o elemento de um objeto.

E que função tem esse objeto?

Meu poema talvez não seja mais que o depoimento da procura de algum sentido. Mas o que sinto quando penso assim, nestes termos, é que estou reduzindo a coisa toda. Muitas vezes tento escrever sobre algo que parece ser inexpressável. Mas vou tentar resumir. Escrevo para dar outro sentido para certas experiências e também para tentar dizer o que não pode ser dito. Todo o livro do Exílio brota da limitação do uso da linguagem. Da minha limitação, é claro.


É possível escrever sem cair na literatura?
Literatura, em relação ao que estamos falando é um conceito secundário, derivado. Escrever sem subterfúgios para mim quer dizer escrever sem que a escritura, o estilo e as suas inúmeras variações literárias, se imponha e desvie minha atenção da origem não verbal que irradia o pensamento e que é onde permanece toda a vitalidade criativa.

Por origem não verbal te referes ao teu interior que ...

A origem não verbal a qual me refiro é anterior a nomeação do silêncio. É esse estado sinérgico - sensível, intuitivo, emocional - que procuro conservar latente para que aja sobre a linguagem, impregnando a linguagem, durante todo o processo de elaboração do poema.

O que tem esse estado que gera o pensamento a ver com a inspiração?
Seria o canal da inspiração, se queres usar essa palavra fora de moda. Vê bem, sem cultivá-lo, sem cultivar minha sensibilidade, minha intuição, minha comoção, eu me tornaria num artesão de palavras e não alguém que usa as palavras como instrumento. As palavras não seriam meu meio, mas o meu fim. Em ambos sentidos.

E como tu o cultivas?
Depende da vida que se leva. Lembras que em uma certa etapa da minha vida eu quase não comprava livros? Ter pouco dinheiro me fazia esperar o momento, que geralmente era quando eu estava mais vazio dos meus interesses e mais receptivo. Ia à tarde e em jejum. Me importava que aqueles livros potencializassem meu estado de espírito e o sublimasse.

Sublimasse de que forma?

Em cadeia. Me fizessem escrever versos ou desenhar esboços – dos lugares onde estava, ou das pessoas com quem estava, de mim mesmo muitas vezes – num só gesto, de traço contínuo, nas primeiras páginas brancas ou na contracapa do livro recém adquirido. O impulso vinha em fluxo com...

Se outro te ouvisse falar diria que estás glamourizando tua vida de artista.

Estou falando de uma maneira de viver o dia a dia integrada com a minha sensibilidade, que é a minha forma de esperar pelo poema. É claro que sempre existe margem para uma interpretação pejorativa do que é dito, mas isso diz mais respeito aos outros que a mim. A inspiração não é definível fora da experiência pessoal de cada um. As palavras podem inspirar tanto quanto qualquer acontecimento. Ler é inspirador, muitas vezes mais inspirador que a a realidade lá fora porque faz com que tu a vejas através do que estás lendo.

Vou fazer outra pergunta cliché. Reconheces tua própria voz no teu poema?

Será que lendo o que estou dizendo agora me reconheceria? Me importa pouco. Houve um momento em que não me reconhecer no que escrevia era um problema. Me preocupava demais com as variações da leitura. Perda de tempo. Por mais que eu me esforce minha expressão nunca será imune aos ataques da leitura. Há inúmeras maneiras de dizer o que se diz e só podes escolher uma. Nem sempre a que eu escolhi foi a mais espontânea. Descambei para um excesso de formalismo e, de certo modo, usei o estilo como couraça. O rigor muitas vezes oculta um tipo comum de vazio existencial, que só aparenta ser fértil quando adubado pela atenção dos outros.


Mas se não há como escapar da artificialidade, se o rigor formal, se a linguagem mascara, todo poema seria artificial. E mais, de não ser assim, esse vazio existencial a que te referes não te serviria como mote para um poema?

Se considerares que toda linguagem mascara, a questão está em fazer a máscara com o molde do teu rosto. E não o contrário. Se a forma do teu rosto é vazia, que o vazio molde a tua expressão. Em um dado momento, quando meu livro foi publicado no Rio, senti que o autor daqueles versos não era lá muito parecido comigo, embora eu tenha levado mais de quinze anos para dá-los por terminados. Tens razão ao defendê-los. Mais artificial ou melhor, mais inocente, fui eu ao pretender fazer de cada poesia uma obra de arte premeditada.

E porque não te identificaste com eles?

Francamente? Porque eles não estão a altura do poeta que imaginava ser.

E que outro poeta imaginavas ser?
Não importa mais porque o único poeta que alcancei ser foi aquele lá, e não o outro, que só existe idealizado. Na realidade, não é um modelo de poeta, mas de poesia; que no es lo mismo pero es igual. Daí que só se pode incorporar, se necessitas mesmo de uma aparência, a identidade positiva ou negativa do que se realiza e não do que se pretendeu realizar...

Essa necessidade de encontrar a tua identidade teve algo a ver com voltar à Santana do Livramento?

Muito. Quando estás longe, em viagem, como eu estive tantos anos, as raízes se tornam muito importantes. Formam a massa interior, a nebulosa que filtra a sensação do trânsito. Agora, quando se volta para casa se percebe que aquele atavismo ficou com a viagem, que as raízes eram parte da viagem. O mais difícil foi experimentar, justamente no lugar onde minha história começa, que o passado é o passado e que também na fronteira eu seguia de passagem por mim mesmo. O meu presente não mudou porque tentei voltar ao início. Aceitei que não é possível recomeçar, que eu tinha de seguir de onde estava. E que, como já percebeste, eu sempre termino por descobrir o óbvio.

O que tem de tão óbvio nisso?
Ora, que estamos sempre em viagem. De passagem, mesmo quando não saímos a lugar nenhum. Que a identidade só é real para o observador, não para o observado.

Notaste que quando buscas teu centro, quando o lugar em que vives se esvazia, instintivamente te deslocas ao sul. Foi assim quando de Londres foste à Florença e depois à Sicília.
Sim, mas para chegar à Inglaterra, viajei ao norte.

Tal qual. O sentido inverso quando o estado de espírito é inverso. Ao Norte quando te aventuras, quando queres mundo e não refúgio.
Pode ser coincidência. Depois de voltar para a casa e não encontrar na casa mais que o quadro na parede do Drummond, também parti ao sul, ao Rio Negro. Dois anos mais tarde, quando as coisas pioraram mesmo, desci um pouco mais, para Montevideo. O meu estado anímico no Uruguay, foi o oposto daquele de Lavínio, que foi idílico, na costa do Mediterrâneo, em 89.

Idílico?

Na Itália eu realizava o destino que havia imaginado para mim na adolescência, quando li a autobiografia do Neruda. Nada se comparava então à experiência do poeta chileno no extremo oriente, isolado do seu mundo, cônsul paupérrimo entre birmânes, escrevendo Residencia en la Tierra. Foi idílico porque eu também estava isolado do meu mundo em Lavínio e escrevendo versos. Lá, o português se tornou um idioma que só existia no meu pensamento, quando eu escrevia. Era a minha porta de acesso ao estado radiativo, e não mais uma língua de uso coloquial. Porque depois de algum tempo até sonhar eu sonhava em italiano.

Neruda? Pensei que desconsiderasses o Neruda.
O mitomâno, o parasita da própria lenda, sim. Não o primeiro terço da poesia que ele escreveu. Nem a forma como o menino que eu fui incorporou o que ele conta. Ao ler o episódio do jovem diplomata na Birmânia projetei minha própria aventura dentro daquele molde romântico. Os mesmos moldes que não se sustentaram quando voltei ao Rio ou, um pouco mais tarde, viajando por aí para ler poesia. Não me livrava da impressão de pretender ser alguém que eu não era. Eu era o Thomaz Guilherme, em choque consigo mesmo, quero dizer, em choque com um tipo de Thiago de Mello pós-moderno, que sem querer ele estava se tornando.

Thiago de Mello pós-moderno?

É. Uma espécie de ascetinha autodoutrinado. Sua rigidez de avaliação sobre quem era ou não farsante naquele meio beirava o fanatismo. Ele era um inquisidor. Bastante míope, por sinal.

Eras?
Ainda sou. Um pouco. Só que agora apenas de mim mesmo.



II
17 de agosto de 2004
Editando a gravação passada fiquei com a impressão que, na realidade, o que fracassou foi a tua aventura romântica.

Como assim?

Já sabes que não terás a vida de um Neruda idealizado, nem a do Vinícius, a la poetinha. E depois, tem os teus poemas.

Que tem eles?

Existem. Tua aventura, o tipo de vida que levaste, te permitiu escrever alguns poemas. Te proporcionou experiência, sabes o que é estar em foco, trabalhando.
Houve um tempo em que cada poema, muitas vezes cada verso, era um marco biográfico que encerrava em si uma determinada etapa da minha vida.

Como assim?

É sério. Através deles eu era capaz de integrar minha biografia numa narrativa histórica. Este poema vem daquela experiência. Assim eu dava sentido ao futuro que minhas escolhas projetavam.

A crise pela qual passaste é a de um modelo de indivíduo.
Justamente. Do poeta como demiúrgo ou redentor. Queiras ou não, visto com meus olhos de hoje, em pouco diferencio os anjos de Rilke, o vidente rimbaudiano incorporado por Breton e aquela glosa toda do El Arco y la Lira. Agora, eu realmente vivi tal modelo e experimentei a crise do seu esgotamento existencialmente.

Leste The Waste Land com aquela perspectiva romântica e não com a perspectiva que Eliot...

... sim, que Eliot de certo modo inaugurava. E que Becket, cuja sensibilidade diluía Kafka, mais tarde esgotava. Os li com meu romantismo imune, com olhos incontamináveis. Sem saber que a crise que aqueles textos tratam estava já nos meus poemas, esperando que eu checasse minhas certezas para implodí-los.

Percebes que essa crise faz parte de um processo que talvez te oriente na direção de ti mesmo?

Não, não vejo um processo, nem nada parecido a mim mesmo para onde eu possa dirigir-me. Percebo saltos de entendimento, muito raros, entre recaídas que menosprezam o que quer que eu tenha alcançado. Mas como estás condescendente, dá para estranhar.

Se te censuras sou condescendente, se és condescendente te censuro. Desde criança que é assim.

É curioso, mas ter voltado para Santana me devolveu um pouco aquele menino. Ele vem emergindo, aos poucos, lá do fundo de uma vida que ele não previu, na qual foi posto de lado e esquecido.

Vê, é ao que me refiro quando digo na direção de ti mesmo. Estás falando de quê, de memória emocional?
Podes chamar como queiras. Estou falando da sensação de estar consigo que temos na infância. Ela me permitiu viver a solidão que eu senti não mais como algo ameaçador e negativo mas como a natureza de qualquer um neste mundo. O menino que eu fui intuiu isso profundamente. Ele se comovia com ela, sem autopiedade. Quando criança eu me sentia abençoado.

Abençoado por Deus?

Abençoado por minha própria a vida. Pela vitalidade do meu metabolismo. E a projetava. A projetava em qualquer lugar. Quando eu descobri os versos percebi que a poesia era uma forma de fazer a mesma coisa, de canalizar as projeções com mais intensidade. Olha, tem um haikai que eu li de hoje de manhã. Vou trazer o livro ... Diz assim:

Depois do banho frio
sem ter onde jogar a água
cantam insetos

Não parece nem um poema, não é mesmo?

A versão para o português é mais uma descrição que uma tradução do poema. Esse homem, depois de ter tomado banho, não sabe onde esvaziar a tina porque a terra em torno está cheia de insetos – ele escuta o zumbido que o tradutor chamou canto – e a água pode incomodá-los.

E então?

Então que esse homem não vive na terra como se a terra lhe pertencesse.

Entendo, é meio budista, não?
Tem um outro por aqui que ilustra bem a comunhão com o cotidiano, o tipo de vida a qual me referia quando dei o exemplo dos desenhos nas contracapas dos livros recém comprados:

O vento de outono
move a persiana de bambú
e o meu coração

Tá bom, e quem te entende agora?
Fala da vida integrada. A brisa, a cortina e um homem atento. A comoção é uma reação ao acontecimento e passa a ser parte dele. E a cadeia prossegue na linguagem. Por isso é que, e lá venho eu com a obviedade novamente, o escritor deve antes ser um homem integrado. E isso não se alcança só com dominar os meandros da escritura ou citando o métier. Eu me lembro da primeira reunião na Biblioteca Nacional, em 91, para a revista de poesia que seria editada pelo Affonso. Da minha estranheza com as citações, A estrofe traduzida de Dante que o Lucchesi citava em italiano, de As Pombas e alguém dizendo –acho que era o Secchin- a primeira estrofe. Eu não entendia que aqueles poetas viam a poesia dentro de uma tradição de referências literárias já estabelecida quase como uma disciplina, Gonçalves Dias, Fagundes Varela, Olavo Bilac, etc. Me senti deslocado. Quero dizer, eu via e ainda hoje vejo o mesmo impulso criador que me faz escrever na pintura ou na música, não na literatura como uma disciplina propriamente dita. O que eu admiro em Morandi ou num desenho clássico de um bambú oriental é muito mais importante para mim como linhagem de sensibilidade que as relações que poderia haver entre A Invenção de Orfeu e um dos heterônimos do Pessoa.



III
21 de agosto de 2004
Partindo de onde ficamos. Dizias que o teu caminho não se alcança daquele modo, literário, para chamá-lo de alguma forma. Se alcança como, então?
Acho que, no meu caso, passe por humanizar-me mais profundamente primeiro. E esquecer todo processo anterior ao incorporá-lo. Talvez tenha a ver com o espaço interior que a compaixão abre e que permite enfocar o instante em outra velocidade, menos vazada por tanto estilhaço mental, por tanta necessidade de reconhecimento profissional, a Academia, o Congresso pago, o Jabuti. (Quem não quer ganhar um Jabuti, não é?) Talvez tenha a ver com sentir menos medo de enfrentar o presente, o pânico que o vácuo do presente cria no presente. Estamos sempre pensando no que fazer mais tarde. Mas eu não cito aqui Eliot ou Becket por Eliot ou Becket. Estou falando por mim.

Falas do amanhã que projetamos continuamente para nossas vidas agora neste exato momento?
Falo da ambição e do medo. Me refiro ao passado que tentamos ordenar com uma biografia coerente pinçando datas, sucessos, acidentes que nos façam mais parecidos com quem esperamos nos tornar um dia. Mas nosso passado não é linear, nem nosso futuro estará num livro. Passado e futuro se avolumam no bastidor da nossa mente e tomam um espaço que deveria estar menos congestionado desse tipo de projeção.

Não se pode negar que o teu passado existe em quem és hoje.
Não posso, nem quero negar, na verdade não queria mais me ocupar desse tipo de questão.

E o que tem o medo a ver com ...
O medo acelera o presente. É um propulsor de ansiedade. Vê bem, no pior momento que já enfrentei, no escuro interior mais escuro, eu me disse: – acaba então comigo. Tá bom não vou morrer senil, de câncer ou o que o valha. Mas agora. De vez! Estava paralisado, dentro do Jovem Törless, em Montevideo. Sem saber como sair da cama, respirando curto, as pernas geladas. E no mesmo momento em que me entreguei à morte a pressão aliviou. Minha depressão se nutria do medo de seguir caindo. Humanizar-se tem a ver com superar o medo, e uma forma de superá-lo é se entregar. A entrega desacelera o presente.

E como chegaste lá, quero dizer, o que te levou a ...
The Waste Land, meu caro Watson. Ter feito terra arrasada da vida que me levou do Neruda à Europa e de lá, de volta ao Rio, ao poeta que eu sonhara ser entre os poetas que eu sonhara encontrar. E do Rio foi um passo a me sentir um desconhecido para mim mesmo, um dissociado observando de fora o que me acontecia como se acontecesse a outra pessoa. Incapaz de deter um só pensamento sem que outros, obsessivos e aleatórios, se sobrepusessem no mesmo momento. Me tornei refém de idéias fixas, recorrentes, a cada vez que tocava na caneta, riscava um verso ou um pensamento. Eu me olhava e via um estranho. Então passava a me sentir um sósia desse estranho. Quando perdi o controle do pensamento perdi o poder de concentração.

Procuraste ajuda?
Busquei ajuda, fui ajudado. Pessoas que eram então totalmente estranhas me protegeram. Fazia 500 kms para ir e voltar de Los Moros, a estância onde eu trabalhava, à Montevideo uma vez por semana para me tratar. Aos poucos recuperei meu centro, com exercício físico. Afinal o que mais restava para mim, que fosse mais real, que o meu corpo? A velocidade mental arrefeceu e consegui, depois de dois anos, voltar a ler sem perder o parágrafo na quinta linha. Passei a reter os insights, as percepções, do que acontecia em frases curtas e tomava nota. Comecei a escrever um diário da convalescência. Sentar, a cada manhã, com uma xícara de café, rodeado por meus livros, gatos e cachorros, no silêncio do fundo do apartamento de Pocitos, me devolveu a rotina de olhar para o mundo e para mim mesmo através das palavras. Palavras que eu lutava para não censurar antes mesmo de escrevê-las. Tinha essa cena, uma sequência, na verdade:



"Numa manhã atemporal de inverno ando pela neblina recém amanhecida sem saber quem sou. Dou por mim sempre numa esquina diferente. E sigo o fluxo do trânsito. Estou exausto, tenho fome. Entro numa cantina de subúrbio, iluminada apenas pelo lusco fusco das brasas apagando na churrasqueira. Mastigo carne, bebo vinho e me deixo estar até que o estalo de um guarnadanapo e o olhar impaciente do assador me resgata do vidro verde da farinheira onde serpenteavam os riscos da conta do almoço recém deixada presa embaixo dela."


Quantas vezes escreveste o texto para tê-lo assim, na ponta da língua?
Com as variações todas? Não sei, meses. Mas ele vem de antes, do que ocorreu no lugar de onde o desmemoriado parte aquela manhã.

Porque destruiste esse manuscrito?
Eu não o destruí. Ele foi se transformando. Se tornou outra coisa, que deu em nada.

Me conta mais, seria uma ficção, não é? O que ocorre depois, na cantina?
Encontro na gabardina alguns pesos, quatro notas de cem dolares e, entre outros papéis, o cartão do hotel Aramaya para onde um táxi me leva enseguida. No táxi devo ter cochilado. Tenho flashes de um casarão guardado por ciprestes e me vejo contornando um muro baixo, coberto de trepadeira. Há um barranco íngreme, de terra vermelha lavada por deslizamentos e uma escadaria que some para baixo de tão alta. É como se a escadaria fugisse da curva de uma montanha russa e eu fixasse, na fuga, um horizonte de galpões e cultivos, vinhedos, como os dos campos de Canelones que rodeiam Montevideo.

Tem alguém esperando por ti no Hotel?
O gerente. Ele me devolve dois sacolões de borracha com um logotipo de paraqueda em relevo e um portafoglio de couro de jacaré que eu nunca tinha visto antes. Cobra do cartão de crédito as diárias atrasadas do quarto 51 e, ao perceber minhas intenções de permanecer no hotel, uma semana adiantada. Diz para eu não me preocupar que ele reporta a la Jefatura o meu retorno. Foi gentil. No elevador decido escrever o que me lembro do dia, por se na manhã seguinte eu esquecesse do ocorrido até ali. Mais tarde descubro que esse recurso não era novo e que eu já havia tomado a mesma precaução.

Então havia um diário precedente?

No portafoglio há um caderno, desses para esboços a crayon, junto com uma agenda. Nas últimas páginas escritas do caderno o texto está rasurado, as linhas acavaladas, como se tivessem sido feitas no escuro. Mas há muito material anterior, notas, poemas, que cobrem o período que vai da volta para casa, do Rio à Livramento e daí para o Rio Negro.

A bagagem que herdaste do hóspede do 51 me fez lembrar da Heidrun e dos teóricos literários alemães que levantaram todo material disponível sobre Trakl e o elencaram. Escreveram uma biografia que não privilegia o manuscrito do Crepúsculo de Inverno sobre uma prescrição farmacêutica para o poeta ou um cabograma com seu nome.

Sim. Tudo é histórico, portanto a história não existe.

Não, isso é Paul Veyne. Estou falando dos discípulos de Jaus e Iser.
Sim os da minha monografia sobre o Dante Milano. Não lembro mais quem eram, Schmidt, Harro Muller?

Mas o que estou pensando é na bagagem aberta no quarto de hotel. Cada roupa, cada livro, cada objeto reconstrói o passado de uma identidade. É o mesmo processo da biografia - inventário que os historiagrafos literários fizeram sobre o Trakl.
Bom, nesses termos, eu me nego a incorporar o espectro projetado pela bagagem. Para mim, naquele momento, quem quer que eu tivesse sido não existe mais. Eram as coisas dele, do estranho de quem, como disseste, eu herdara as duas bolsas e a maleta. Decidi que aquele era o dia zero da minha vida. E ele começava no papel. Escrevi dia 0, numa folha com a marca d’água do Aramaya, e segui assim, acho que ainda sou capaz de repetir as primeiras linhas:

“Estou sentado à mesa de um quarto do Hotel Aramaya com vista para a esquina da avenida 18 de Julio e Paraguay, na cidade de Montevideo. Se volto ao mundo esta tarde no balcão de uma parrilla em Dolores, devo ao momento em que busco dinheiro sem saber se o possuo. Enquanto procuro, tomo consciência de que tampouco sei de mim ou da minha situação.”
Naquele momento a sensação que eu tinha era a de estar visitando o mundo.

É curioso que tenhas recorrido ao papel usando a escrita como salvaguarda. A tua memória imediata se desdobra e se torna também uma descrição da memória, não é mesmo?
Por mais que escrever, no Aramaya, me salvaguardasse, como dizes, eu não era sequer capaz de evitar a estranheza da minha caligrafia. Não reconhecer minha própria letra me distancia do que vai sendo dito nela como se, ao pensar, eu também estivesse limitado pelo esquema mental de outra pessoa contando as suas experiências e não as minhas. Não importa o que eu fizesse, era sempre outro vivendo a vida por mim.

O que dizem as páginas do caderno, as que foram escritas no escuro?
Não muito. Descrevem um saguão que eu associei com o interior do casarão dos ciprestes. Um saguão com um vitral sobre minha cama. Ela estava rodeada por corcundas cobertas com lençóis. Parece que embaixo dos lençóis reverberava qualquer coisa de cristal, que podia ser um lustre ou taças muito juntas, cada vez que alguém caminhava no andar de cima. Dão conta desse tipo de detalhe e não dizem nada sobre como cheguei ali. Deixam entender que eu posso ter sido acolhido por duas desconhecidas, mãe e filha, que me cuidaram até que eu pudesse tomar conta de mim. Nada sobre como saí de lá tampouco. Há uma passagem sobre o espelho que é recorrente.

Como assim?

Não reconhecer-me no espelho. Há textos e poemas sobre isso no caderno. Do que pude descifrar das linhas acavaladas, no banheiro eu procuro algum sinal que possa ter sido causa de trauma e que explique minha situação fisicamente, através de um acidente, por exemplo. Mas as marcas que eu tenho no rosto não são recentes, nem relevantes. Descrevo esta cicatriz no supercílio, o nariz torto, fraturado, estes cortes no queixo onde a barba não nasce. Tudo me parece herança de outra encarnação. Descubro as tatuagens. Descubro no corpo o mapa de um passado que não me pertence. Sinto que o corpo não me pertence. É angustiante. E há outras passagens sobre a ubiquidade, sobre estar fora de mim e em mim mesmo ao mesmo tempo, sobre como, para resistir ao poder de atração do rosto no espelho, o recorto em detalhes, em cílios, em cicatriz, em pulsação da órbita do olho, e assim repelir o impulso que me impele a incorporá-lo. Estou sempre me vendo de fora.

Porque não voltaste para casa? Tentaste teu pai?
É que eu não me sentia filho de ninguém. Eu repelia o passado que me levara aquele estado. Repelia a identidade que a bagagem espalhada pelo quarto reconstruia. Pelos documentos lembrei da estância, dos cavalos e do gado. Possuia uma procuração de plenos poderes da proprietária, minha mãe, para administrá-la. Tinha um talão de cheques. Fui ao Banco levantei o saldo, um bom saldo, no Banco República. Decidi deixar o hotel e procurar um lugar mais barato. O dinheiro era suficiente para uns oito meses, um ano até, de sustento, dependendo como me organizasse. Por ser inverno fui para a praia, ao leste, onde os aluguéis seriam mais baratos. Escolhi parte da roupa. Conservei o 38, um tijolinho de fumo porque me ajudava a dormir e este antigo canivete francês Lacuoli. Fui à garagem mais próxima do hotel – que não tem garagem - e encontrei a picape da chave da GM que estava, não sei porque, dentro de uma bota.

A picape dentro de uma bota?

A chave estava dentro de uma bota. Não foi difícil pois era a única camioneta com placa brasileira estacionada no parking. Era a minha.

Mas conservaste o caderno?
E segui escrevendo nele o que ocorria cada dia. Escrever passou a me ajudar a dominar meu próprio pensamento. Escrever me liberava, era um exercício de atenção.

Como liberava?

O que estava escrito ficava escrito, saía da minha cabeça, da minha existência. Aos poucos, muito lentamente, fui me acostumando com a idéia de repassar todas as notas do caderno e reescrevê-las. Porque eu sentia ainda a latência da crise que elas testemunhavam. Nessa época eu já estava em Punta del Diablo, num chalezinho de uma só peça com mezanino, corria e pulava corda. Me exercitava muito, e me preocupava em que fazer quando o dinheiro terminasse.

E que fizeste?
Nada. O dinheiro ainda não terminou.

Como? Estás aqui, na fronteira, trabalhas na estância, a mesma que ...
Quero dizer que o fato de eu ter voltado para casa não mudou a vida que eu levava ali. Restaurei certa intimidade comigo mesmo. E estou escrevendo um livro com aquelas notas, um livro novo, diferente delas.

E quem se diz Eu no livro?
Ninguém. Só a linguagem.

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