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A concisão que distingue, de Fernando Py, sobre Sol sem Imagem



FERNANDO PY

O que distingue, à primeira vista, a poesia de Thomaz Albornoz Neves, é a sua concisão. Todos os poemas de Sol sem Imagem, sobretudo Oráculo, O Taumaturgo, Pampa, A Onda, A Ostra, e os das séries A Morte e O Ato, têm em comum a escassez verbal. Na grande maioria dos casos o poema se resolve em poucas palavras, num vocabulário às vezes recorrente, não por pobreza de expressão e sim por um movimento reiterativo que está na própria estrutura do poema e que busca gravar, na memória do leitor, a imagem antes construída.
No poema que abre a coletânea, O Estrangeiro, o poeta configura uma espécie de isolamento pessoal (literário? estético?), depois que os amigos partiram em turnos descrentes da espera. Esse isolamento, essa atitude de recolhimento em si mesmo, corresponderia não só à posição do poeta como indivíduo, mas também como criador. No primeiro caso, como no segundo, seria ele um “estrangeiro” - quer na sociedade em que vive, quer entre seus pares. E mais ainda: esse poema prenuncia a própria estética do autor, voltada para o mínimo expressional, para o fragmento.
Pois é o fragmento aqui entendido não como a parte incompleta do todo, mas como uma forma perfeitamente acabada - não obstante de menor tamanho -,é esse fragmento o núcleo primordial da poesia de Thomaz Albornoz Neves. E aí nos deparamos com uma questão fundamental: uma poesia alicerçada sobre o fragmento não estará sempre correndo o risco de ser uma poesia incompleta ou até mesmo “menor” quanto à qualidade? A resposta estaria na capacidade de condensação do poeta, sua condição de exprimir o máximo com um mínimo de palavras sem perda da qualidade poética.
Essa afirmativa pode parecer um truísmo; porém, na verdade, a condensação vocabular com efeitos estéticos é bem difícil de se obter. Recordo, por exemplo, a facilidade enganadora que apresenta um poema curto como o haicai. Na aparência, nada mais fácil do que compor tres linhas de versos com a métrica de 5-7-5 sílabas; mas o poema japonês não é mera questão de forma, e é aí que afunda a maioria dos que fazem haicais no Brasil. O haicai exige grande concisão vocabular, o poeta se vê obrigado a dizer o máximo em apenas tres versos... e que seja poesia.
E é justamente esse tipo de concisão que encontramos em Sol sem Imagem. Nos poemas citados acima - alguns reduzidos a três versos, como um haicai, - essa concisão (obtida, segundo depoimento do próprio poeta, à custa de um constante reescrever do poema) assume às vezes um caráter aforismático, definidor e definitivo. Veja-se

ORÁCULO

Recorda e terás esquecido
nada ocorre por acaso
não há destino escrito

Pode-se ver que o poema se compõe de três afirmações, aparentemente desligadas entre si. Além disso, cada uma lembra um aforismo, ou seja, uma sentença que em poucas palavras contém uma regra, uma norma. Outros poemas, como A Morte II, alcançam um tom definitório: Em silêncio / a passagem / Sol sem imagem. E, em poemas um pouco maiores, não raro o ritmo dos versos perfaz um movimento ondulante de fonêmas, como em

A ONDA

Emerge no mar a onda
Suspenso tempo no ar
Faz ondas no ar a onda
Imerso no tempo o mar

E essa preocupação com o verso conciso faz com o poeta em seu mais longo poema, O Sono, desarticule-o graficamente em pequenos núcleos poemáticos - cada qual numa página - que por si só poderiam ser lidos como outros tantos poemas autônomos. Contudo, cada uma dessas pequeninas notações está solidamente “amarrada” às outras, e é principalmente nelas que o vocabulário empregado pelo poeta refaz e repete imagens já expressas antes, em especial na série O Ato, e nos poemas O Pampa e A Onda. Exprimindo sobretudo noções contrastantes de sombra e luz, de cheio e vazio, de voz e de silêncio, o poeta constrói um lindíssimo poema com enorme economia de meios. A cada poema desse conjunto final sua poesia reforça e renova a um tempo seu espectro vocabular e temático, num trabalho árduo mas sempre convidativo à releitura.

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