Se “todo livro importante é livro de exílio”, conforme advertiu Edmond Jabès, Thomaz Albornoz Neves seguiu o conselho à risca: toda a sua obra – ainda que pequena e nascente – é literatura de exílio.
Eis um jovem autor que se destaca entre seus pares, em decorrência do rumo escolhido. Albornoz é um poeta fora dos eixos urbano e literário brasileiros. Bom que o seja. Afinal, sua força reside nisso: na busca da diferenciação, através da opção por um percurso que nada tem a ver com a tradição lírica nacional. De fato, Thomaz pertence à estirpe de poetas como Valéry, Cavafy, Seferis, Montale ou Ungaretti.
“Sol sem imagem” (Editora Topbooks, RJ), é o terceiro livro do autor, que já publicou, anteriormente, “Renée” (1987) e “Poemas” (1990), em edições independentes de pouca ou nenhuma circulação. A obra atual reúne os trabalhos pregressos (revisitados, “por supuesto”) e apresenta ainda alguns poucos poemas inéditos, escritos especialmente para este volume cuja a qualidade gráfica nada deixa a desejar. A capa é do experiente Victor Burton e a edição é bilíngüe – fato justificado pelo espaço que o autor já conquistou no mercado hispano-americano -, ficando a tradução para o espanhol a cargo do argentino Rodolfo Alonso, poeta e crítico literário de renome internacional, que já verteu para o castelhano Éluard, Pessoa, Drummond, Bandeira, Murilo e Cecília, entre outros. Para dar maior densidade à obra, o poeta Bruno Tolentino preparou uma rebuscada introdução crítica e o escritor e cronista João Antônio, num de seus últimos trabalhos (o ficcionista faleceria em outubro de 1996), conduziu uma longa e reveladora inquirição com Albornoz, incluída no final do livro.
“Sol sem imagem” divide-se em duas partes, sendo a primeira composta por 20 poemas curtos. Logo no texto inicial, intitulado “O estrangeiro”, destaca-se a presença do eu como sujeito poético (embora sem descambar para um confessionalismo de salão) em meio ao rigor e à precisão de linguagem, contidos em versos longos, limados pelo poeta: “Meus amigos partiram em turnos, descrentes da espera. Restei / só na boca da gruta / O tritão gravado na cova, a melena de moluscos mortos, / o mar extinto”. No poema seguinte, “Oráculo”, Albornoz, em versos novamente lapidares, ressalta as divergências e aparentes contradições existentes nas artes adivinhatórias. Assim, compôs este que se revela um dos melhores haicais dos últimos anos: “Recorda e terás esquecido / nada ocorre por acaso / não há destino escrito”. O misticismo do poeta prossegue em “O taumaturgo” (“O taumaturgo tombado / na enseada deserta / Sendo / o próprio milagre / O desejo sua beleza”), deságua em “Nômades I” e, consequentemente, em “Nômades II”: “A sós na solidão do mundo / Remota calma no olhar / Vagando sem rumo vivemos / o instante do amor sem história”.
A presença imperiosa da natureza – um dos temas mais caros ao poeta gaúcho, que nasceu e foi criado numa fazenda em Sant’Ana do Livramento, onde voltou a morar, após alguns anos de vivência carioca – permeia todo o livro, e pode ser detectada em poemas como “Pampa”, “Girassol” (“Vira / girassol / o olho no olho do sol”), “O touro cego”, “A onda” e, principalmente, no belo e exótico “O babuíno” (ver quadro abaixo). Já “A ostra” fecha com brilhantismo a linha bucólica do autor: “É ostra / por dentro / a pérola”.
A segunda e última parte da obra é composta por um único e notável poema – “O sono” -, formado por 16 “flashes” lírico-eróticos, em que a técnica de composição remete à sétima arte (o autor, que também é cineasta, chegou a estudar este ofício em Roma). Com uma câmera na mão e várias idéias na mente, o poeta registra o sono de sua musa, realizando com competência a difícil tarefa de transformar imagens em palavras: “No centro do espaço / nua / propagas o vazio / (...) Para que o infinito / possua centro / tua nudez sonha a si mesma / (...) Vês / o que / sentes / És o lago do olhar / na ausência dos olhos / Tua aurora / ecoa / no ar / Aurora no vazio / (...) É dia. / No centro / da luz / raias / A luz é tua sombra”.
Bruno Tolentino, na introdução à qual nos referimos, afirmou que o autor destes versos é “um mestre na arte do fragmento”. Ocorre que os poemas de “Sol sem imagem” não são fragmentários. São completos em si mesmos. Não é a quantidade de versos de um poema que o torna inteiriço ou fracionário. O melhor parâmetro, naturalmente, é a própria qualidade do texto. E isto, este pequeno grande livro apresenta em profusão.
O BABUÍNO
Sem peso, o sol a pino
um babuíno afogado
tem o mar em seus braços
e o suspende no espaço
Mar de mármore aceso
Peixes de sal, albinos
O babuíno afogado
e o bloco cristalino.
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Ricardo Vieira Lima, poeta.
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