Pular para o conteúdo principal

Um poeta fora dos eixos, de Ricardo Viera Lima sobre Sol sem imagem




Se “todo livro importante é livro de exílio”, conforme advertiu Edmond Jabès, Thomaz Albornoz Neves seguiu o conselho à risca: toda a sua obra – ainda que pequena e nascente – é literatura de exílio.
Eis um jovem autor que se destaca entre seus pares, em decorrência do rumo escolhido. Albornoz é um poeta fora dos eixos urbano e literário brasileiros. Bom que o seja. Afinal, sua força reside nisso: na busca da diferenciação, através da opção por um percurso que nada tem a ver com a tradição lírica nacional. De fato, Thomaz pertence à estirpe de poetas como Valéry, Cavafy, Seferis, Montale ou Ungaretti.
“Sol sem imagem” (Editora Topbooks, RJ), é o terceiro livro do autor, que já publicou, anteriormente, “Renée” (1987) e “Poemas” (1990), em edições independentes de pouca ou nenhuma circulação. A obra atual reúne os trabalhos pregressos (revisitados, “por supuesto”) e apresenta ainda alguns poucos poemas inéditos, escritos especialmente para este volume cuja a qualidade gráfica nada deixa a desejar. A capa é do experiente Victor Burton e a edição é bilíngüe – fato justificado pelo espaço que o autor já conquistou no mercado hispano-americano -, ficando a tradução para o espanhol a cargo do argentino Rodolfo Alonso, poeta e crítico literário de renome internacional, que já verteu para o castelhano Éluard, Pessoa, Drummond, Bandeira, Murilo e Cecília, entre outros. Para dar maior densidade à obra, o poeta Bruno Tolentino preparou uma rebuscada introdução crítica e o escritor e cronista João Antônio, num de seus últimos trabalhos (o ficcionista faleceria em outubro de 1996), conduziu uma longa e reveladora inquirição com Albornoz, incluída no final do livro.
“Sol sem imagem” divide-se em duas partes, sendo a primeira composta por 20 poemas curtos. Logo no texto inicial, intitulado “O estrangeiro”, destaca-se a presença do eu como sujeito poético (embora sem descambar para um confessionalismo de salão) em meio ao rigor e à precisão de linguagem, contidos em versos longos, limados pelo poeta: “Meus amigos partiram em turnos, descrentes da espera. Restei / só na boca da gruta / O tritão gravado na cova, a melena de moluscos mortos, / o mar extinto”. No poema seguinte, “Oráculo”, Albornoz, em versos novamente lapidares, ressalta as divergências e aparentes contradições existentes nas artes adivinhatórias. Assim, compôs este que se revela um dos melhores haicais dos últimos anos: “Recorda e terás esquecido / nada ocorre por acaso / não há destino escrito”. O misticismo do poeta prossegue em “O taumaturgo” (“O taumaturgo tombado / na enseada deserta / Sendo / o próprio milagre / O desejo sua beleza”), deságua em “Nômades I” e, consequentemente, em “Nômades II”: “A sós na solidão do mundo / Remota calma no olhar / Vagando sem rumo vivemos / o instante do amor sem história”.
A presença imperiosa da natureza – um dos temas mais caros ao poeta gaúcho, que nasceu e foi criado numa fazenda em Sant’Ana do Livramento, onde voltou a morar, após alguns anos de vivência carioca – permeia todo o livro, e pode ser detectada em poemas como “Pampa”, “Girassol” (“Vira / girassol / o olho no olho do sol”), “O touro cego”, “A onda” e, principalmente, no belo e exótico “O babuíno” (ver quadro abaixo). Já “A ostra” fecha com brilhantismo a linha bucólica do autor: “É ostra / por dentro / a pérola”.
A segunda e última parte da obra é composta por um único e notável poema – “O sono” -, formado por 16 “flashes” lírico-eróticos, em que a técnica de composição remete à sétima arte (o autor, que também é cineasta, chegou a estudar este ofício em Roma). Com uma câmera na mão e várias idéias na mente, o poeta registra o sono de sua musa, realizando com competência a difícil tarefa de transformar imagens em palavras: “No centro do espaço / nua / propagas o vazio / (...) Para que o infinito / possua centro / tua nudez sonha a si mesma / (...) Vês / o que / sentes / És o lago do olhar / na ausência dos olhos / Tua aurora / ecoa / no ar / Aurora no vazio / (...) É dia. / No centro / da luz / raias / A luz é tua sombra”.
Bruno Tolentino, na introdução à qual nos referimos, afirmou que o autor destes versos é “um mestre na arte do fragmento”. Ocorre que os poemas de “Sol sem imagem” não são fragmentários. São completos em si mesmos. Não é a quantidade de versos de um poema que o torna inteiriço ou fracionário. O melhor parâmetro, naturalmente, é a própria qualidade do texto. E isto, este pequeno grande livro apresenta em profusão.

O BABUÍNO

Sem peso, o sol a pino
um babuíno afogado
tem o mar em seus braços
e o suspende no espaço

Mar de mármore aceso
Peixes de sal, albinos
O babuíno afogado
e o bloco cristalino.



---------------------------------








Ricardo Vieira Lima, poeta.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mar Becker

  De Mar Becker sei que nasceu em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e que é gêmea de Marieli Becker. Sua mãe, Meiri, costurava em casa e sua avó, Maria Manoela, foi vítima de uma tragédia não revelada às netas crianças. Que estudou filosofia e hoje mora em São Paulo, na reserva de Guarapiranga, com Domênico, seu marido. Sei que é leitora voraz, que tem bom gosto poético e que é culta, que gosta de cavalos, cães, gatos, Zitarrosa, de música nativista e de Glen Gould. Que toca violão e canta, gauchinha, com voz meiga, quase infantil. Sei outras coisas que, como estas, importam pouco, são letra fria diante do que ela escreve e da forma como escreve os poemas de "A mulher submersa", seu livro de estreia publicado pela editora Urutau.  A primeira impressão de leitura é de que esses poemas foram impelidos por instinto de urgente sobrevivência. Apesar da urgência, há neles lenta maturação e extremo refinamento. A leitura nos deixa quietos, maravilhados muitas vezes, enternecidos e ...

Outra leitura de "Oriente", por Paulo Franchetti

Passei os últimos dias navegando erraticamente pelo volume "Oriente", de Thomaz Albornoz Neves. São 771 páginas, encadernadas em capa dura, em edição rigorosamente do autor. Quero dizer: o trabalho de seleção dos textos, a tradução, as anotações, a chancela editorial, o projeto gráfico e a diagramação, tudo.  Não vou longe nestes comentários. Esse mar de poesia é amplo, a gente tem de passar entre Cila e Caríbdis várias vezes, tem de interpretar, sem ouvir, as reações desse Ulisses ao contínuo canto das sereias orientais e, por fim, não poucas vezes, na companhia imaginária dos leitores presentes e futuros, regalar-se no banquete, nos termos em que Carlos Alberto Nunes traduziu o momento da confraternização sagrada: “todos as mãos estendiam tentando alcançar as viandas”. Não li de enfiada, confesso. Um livro como esse é um companheiro de muitos anos. A gente mergulha, sai, respira, sente saudade e volta para nova imersão, exercício ou banho rápido. Outras vezes apenas para bu...

Postagens da Campanha -Primeiro Turno-

  15 de agosto A campanha começa oficialmente amanhã O serviço prestado aos brasileiros pelo bolsonarismo nos último quatro anos é imenso. Unir ignorância e agressividade ao liberalismo provocou desastres em várias esferas. Na institucional, ameaçando a democracia e o equilíbrio dos poderes, na ambiental, desmatando florestas e invadindo reservas, na sanitária, a gestão terraplanista da pandemia, na econômica, incapaz de implantar uma rede básica de proteção para os 35 milhões de miseráveis, na administrativa, comprando o impeachment do Centrão, na segurança, armando as milícias, na educação, reduzindo o orçamento -que já é ridículo- e implodindo as especializações. Poderia seguir indefinidamente... A preguiçosa corrupção dos tempos do Império, lenta, metastática, feita da praia em Angra. E a central, kubitschekiana, com o orçamento secreto. Sim, é enorme o serviço prestado pelo bolsonarismo. Desde a maxidesvalorização do cruzeiro que quebrou a indústria nacional em 1983 não tínham...