Pular para o conteúdo principal

"Exílio. O poema quântico". por Juva Batella



Os poemas que compõem o grande poema que se lê em Exílio não são narrativos; funcionam, antes, como fragmentos, e não como etapas ou camadas. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é, portanto, do tipo retórica ou esparramada, e compõe-se num espaço textual tão conciso, que o leitor — não tendo para onde fazer correrem os olhos — deve permanecer onde está, com o olhar virado para si e tentando, dentro de si, encontrar, neste espaço privado, uma equivalência pessoal para o jogo de espelhos de outro espaço privado: o espaço do poeta, ou, antes, do olhar do poeta sobre o mundo, sobre o seu fazer poético e ainda sobre o seu próprio olhar acerca deste fazer. A poesia de Thomaz Albornoz Neves não é fácil de se ler às pressas. Lendo-a às pressas, ela nos escapa.


Ler poesia, em geral, não é fácil. É, antes, um movimento que caminha contrário à automatização que se ganha com o tempo e com os tempos dedicados à leitura de prosa — este correr de olhos em que saltamos de uma palavra à outra, reconhecendo-lhe de longe a silhueta e rapidamente a identificando. Ler poesia é deter-se diante de cada palavra, como se tivéssemos de lhe compor uma espécie de retrato-falado.


Também não é nada fácil tecer um discurso crítico acerca da poesia. A capacidade que tem um bom poema de gerar leituras as mais diversas pode acarretar a infeliz conseqüência de se produzir um discurso crítico que facilmente escorregue no abstracionismo e se afogue numa linguagem toda ela de potências absolutas, ou seja, numa linguagem onde tudo signifique qualquer coisa. Para se salvar deste naufrágio a crítica não deve abandonar, nunca, o seu objeto — o poema —, muito mais portátil do que a prosa e muito mais receptivo a esta espécie de acareação que é, que deveria ser, o discurso crítico. Não é à toa que o poeta marca logo a sua posição:

...

Desdenho a fortuna crítica
ou qualquer nota que contamine
o poema com o que irradiou dele mesmo

E me nutro da latência
deixada no silêncio
pela poesia dos outros



A acareação que faz o poeta, nas linhas que não se lêem, é com a poesia de que se nutre: as suas próprias leituras poéticas, os poetas descobertos no sótão (da memória), “um baú deles”.


Exílio abre-se a nós com o seguinte verso:



Campo adentro


E será este o campo semântico e visual que abarcará os demais versos deste livro, que alguns críticos já chamaram o livro de um único poema. O poeta, no campo, observa, e acrescenta à sua observação elementos da sua sensibilidade acerca do fazer poético, e esta soma, por sua vez, produzirá outros versos. Pode-se dizer que o tom do livro é o da afirmação. O poeta afirma sempre, especialmente no momento final de cada poema.



Campo adentro

Meu cão
na sombra do cavalo

Vazo o rumor do mar



No poema seguinte, a mesma estrutura, com a diferença, agora, da mudança do olhar: o poeta simula o olhar de um outro, que o vê de longe, pontuando o horizonte, e depois anula este olhar, voltando a centrar-se em si mesmo. O pampa, afinal, é sem fim, o que pode ser uma maneira de o chamar de pampa circular. E é por isso que o poeta é distância contemplada, e depois já não há mais a distância entre o que ele se torna e o que dele é visto à distância. O pampa fecha-se. Lembremo-nos do verso do poema anterior — “Campo adentro”, e não “Campo aberto”.



Pampa sem fim

Me torno
distância contemplada

E já não há distância



Veja-se este próximo poema, e não percamos deste grande quadro em pedaços uma só pincelada. Veja-se: arroio, pequeno curso de água; revoada, bando de aves que revoam. Quando se tem isto, entra-se na paisagem — paisagem que, uma vez destilada, se tornou poesia:



Lento galope
no espelho do arroio

A revoada paira
caindo

entre as garças
e o reflexo dos garças



A poesia-pintura de Thomaz Albornoz Neves tem um traço austero. Contamos nos dedos os sinais de pontuação, presentes apenas quando o sentido corre o risco de se duplicar de modo improdutivo. O poeta, abaixo, interrompe a cavalgada e observa a sua poesia-vento, que vem e passa. No meio do caminho, registra-a, e nós a recolhemos. O gerúndio do verbo nascer, entre duas necessárias vírgulas, é o centro desta poética de aparição-desaparição.



Ao sofrear meu cavalo
na sombra dos eucaliptos
silenciam as cigarras

Um silêncio que irradia
a coroa de um cardo
enquanto eu desencilho

Some assim, nascendo,
a poesia



Há imagens de paisagens recorrentes, como é o caso da expressão “planície cascavel”, que pode ser, presumo, uma composição exclusiva do poeta, se não já um termo recorrente do pampa gaúcho. Diz-se de “cascavel” uma porteira construída com dois troncos verticais, fincados no solo. Por eles, através de furos, correm varas horizontais. Uma vasta planície cercada deve oferecer ao olhar uma abundante coleção de engenhos semelhantes. Um dos poemas ainda explora um pouco mais, através da analogia espiga do milho / guizo musical / guizo-de-cascavel, a imagem das cercas serpenteantes sobre o chão do pampa.



No pastiçal
a maresia alcança
a brisa do moinho

E em cada espiga
vibra o guizo
da planície cascavel



A poética do instante, sudenness, é um conceito que circula na poesia e na filosofia, e alguns poetas deram-se ao capricho de especificar o instante na hora exata do meio-dia. O instante como o centro nervoso do tempo — ou, antes, como o único tempo real, porque tudo o mais a que chamamos tempo acaba por ser uma tentativa de se formar alguma ordem no aleatório, de manter tesa uma linha entre um redemoinho de instantes —, este instante, eu dizia, podemos encontrá-lo nesta simples proposta, neste simples quadro: o instante sob o sol, mas também o instante esparramado na tarde infinita, sem tempo, enclausuram ambos o olhar do poeta. Observe-se que não é o infinito da tarde (o que poderia ser, nas palavras do autor, uma afetação poética), mas o infinito na tarde.



O instante ao sol
abole a existência da noite

Mas o infinito na tarde
esbarra igual no limite do olhar



É o olhar do poeta o seu verdadeiro instrumento poético — instrumento que não é só meio, mas também um fim. Este olhar dá conta do instante e do que ilustra a pintura deste instante: o areal deserto, o pampa sem fim, o sol da poça, a fuga do potro, o pastiçal, a enseada, a vidraça à luz da lamparina, o cão, o mar lá fora, o amanhecer na varanda, a ovelha ainda viva junto ao cordeiro parido, a tartaruga gravada no mosaico do sótão — “... cada coisa serve ao poema”, como vemos no último verso de um belo quadro em que o autor confessa jamais ter visto o mundo antes, “com olhos de quem escreve”. Tudo o mais fora do campo deste olhar o poeta chama “o universo” — e este universo está fora da sua poesia no sentido de que não está nomeado. Se aqui e ali ele a invade, é através de intuições. Mas o poeta, neste ponto, é convicto.



Além do que posso ver
o universo
é a falta de alcance da minha visão



Em outro momento deste diário do campo o poeta trata não da própria visão, mas de algo mais complexo: a sua percepção da realidade, que começa e acaba obstruída por ela mesma. Neste poema...



O que percebo da realidade
veda minha percepção
da realidade



... o que o poeta “percebe da realidade” se torna então algo diferente do que vamos encontrar nos versos seguintes: “minha percepção / da realidade”. O poema anula-se e chegam ambos — autor e leitor — a um beco cuja saída só pode ser a própria imagem do beco, ou seja, a expressão desta impossibilidade. O que é que o beco sempre nos vai dizer? Vai dizer-nos que nada pode ser dito. Quando se percebe, e o que se percebe está anulado pela própria percepção, resta ao poeta expressar a anulação. E é isto o que o poema faz, sem nenhuma palavra a mais. É quando o poema se torna o beco.

A busca pela palavra primeva parece ser uma das buscas poéticas mais presentes nos versos de Thomaz. A palavra primeva é a palavra ainda não amortecida ou neutralizada pelo automatismo da leitura — e, já agora, pelo automatismo da escrita. Retorno o meu pensamento à introdução deste artigo, acerca da leitura através da imagem da palavra; leitura realizada como um correr de olhos. Também a escrita pode ser automatizada — e desta automatização está claro que foge o poeta, sempre na busca pela “cifra remota” da palavra, ou pela palavra surda que encontra um ouvido estrangeiro. O ouvido estrangeiro efetivamente ouve, assim como o olhar estrangeiro efetivamente lê, letra a letra — sendo, aliás, o único que se detém em cada letra. Vejam-se estes dois poemas:


1)


Entre os grãos
da areia soprada
e o brilho da tinta fresca

a palavra recém-escrita
à sombra d’água
de uma flechilha

E cada letra
regride
à sua cifra remota



2)

Palavra surda

Em seu eco mental
um ouvido estrangeiro a ela



Ao mesmo tempo, do mesmo modo como o poético, na sua poesia, deve ser alcançado através desta desautomatização da linguagem — escrita e depois lida —, a própria desautomatização corre o risco de produzir uma afetação poética, efeito que se percebe quando algum elemento destoa do conjunto, seja uma palavra, seja o seu som, seja uma imagem evocada que carrega em si algum ranço de convencionalismo poético. Este efeito afetado é bastante difícil de se definir e de se localizar, mas quando ocorre o poema se artificializa. Percebemos o artifício como se, ao cruzar uma esquina, déssemos um encontrão nalguma coisa, e esta coisa — o poema — carregasse dependurado no pescoço uma etiqueta onde se lê: “Isto é um poema”; uma etiqueta a nos avisar que devemos ler aquilo como um poema. Disto foge o poeta, e ele nos diz com todas as palavras, na sua nota de autor, na orelha do livro:

"O que buscava, além do que fosse verdade para mim, era a honestidade que sobrevivesse ao tom do poema. Não sei se consegui livrar o texto da afetação poética. Depende do dia em que me releio, da forma em que me perdoo."

Há um poema que consegue demonstrar, em cada uma de suas duas estrofes, estes dois efeitos: a preocupação em escrever como se fosse a primeira vez (a escrita apenas como potência, ou seja, sem a sua concretização), e ao mesmo tempo a postura alerta do poeta diante de algum risco, por menor que seja, de este procedimento se tornar artifício. Neste poema, abaixo, Thomaz Albornoz cita um período já bastante dito e redito, uma frase brilhante que se foi aos poucos gastando — “Escrever é tentar saber o que é que escreveríamos se escrevêssemos”, de Marguerite Duras, em Écrire —, e depois detecta nela o artifício. É um poema metalingüístico.




Escrevo
para saber o que escreveria
se escrevesse

Mas o que digo
repele
meu entendimento



Círculos metalingüísticos como este, no entanto, não constituem o que há de mais inesquecível neste livro. Estão presentes como a marcar uma necessária e inevitável autofagia da linguagem — relembrem-se os versos: “Some assim, nascendo, / a poesia”. Se a poesia não for o instante fugaz, que o poeta fisga com o olhar e depois solta, ela não será poesia — uma poesia que surge na medida em que se vai embora. E ainda este, com a sua segunda estrofe totalmente auto-referencial:



Não recorro à palavra para reconhecer-me nela

Todo poema a distorce
Mesmo o de agora
dito em voz alta contra a parede

Se calo
a parede volta a pertencer-me
igual a quando dela a sombra do cão se foi



O que há de inesquecível neste livro são os poemas em que o autor, nas suas palavras, nos apresenta a sua “versão atualizada de uma época de recolhimento e silêncio em que eu experimentara o isolamento mais extremo de uma vida já por anos solitária”. E é com um sem-número de imagens que ele nos vai tecendo esta espécie de biografia do próprio olhar. Se ainda é possível falar-se de uma estrutura, ela está bem demarcada em quase todos os poemas: o poeta inicia expondo-nos a sua observação — objetiva e geralmente detalhada — do universo que o envolve, quase sempre minimalista; minimalista na visão da lamparina sobre a mesa ou na do rosto refletido na vidraça; minimalista mesmo na amplidão do campo aberto.

Thomaz observa, detém-se, e em seguida monta o poema, apresentando-nos uma espécie de conclusão insólita, que nos surpreende e nos faz sorrir, como se disséssemos: “Como é possível nunca termos visto o mundo à volta desta maneira?”. No poema abaixo é o último verso que ilumina todo o conjunto: o brilho do azulejo, as estrelas; as nuvens, o embaçado — ambos no seu vaivém imantado.



Ao respirar meu cão
adormecido

o azulejo embaça
uma e outra vez

Vaivém assim

entre as nuvens
e as estrelas

o ímã da noite



Neste outro, abaixo, não é apenas a conclusão que nos assalta; é a proposta que surge de um olhar de um outro sobre si mesmo. O poeta vê o vento; o poeta, em seguida, pratica a observação de si mesmo, envolto no vento.



O vento no areal
só parece estar passando

Eu sou
o interior da sua presença



O nevoeiro e o vento ainda fazem mais: fragmentam a auto-imagem e instauram a velha dúvida cruel:



Entre o papel
e a mecha da lamparina

Sou quem?


Não quem
me sinto sendo

O me é onde?



Poder-se-ia perguntar também: o me é quem?, e o quem é o quê? Retire-se o me do quinto verso, e o verbo “sentir” perde o seu caráter reflexivo, e o quê / quem encontramos? O outro. “Não quem me sinto [o outro] sendo”. Um outro Thomaz? O poeta gosta de brincar com imagens e de operar esta saída de si. Um outro poema nos dá de presente esta síntese: “Tornar-me / quem / me esqueceu”. Ele (re)escreveu, relembre-se: “Escrevo / para saber o que escreveria / se escrevesse”. E bem poderia ter escrito: “Sou para saber o que seria se fosse”. Pulemos para este outro belo poema:



Observo
a consciência do que experimento
antes de vivenciá-la

Assim
uma galeria de mim
me apaga continuamente

O terceiro entre dois cálices



Como escreveu o poeta Ivan Junqueira, num artigo sobre Exílio: “... o ser que o poeta persegue não se dá à luz da percepção sensorial. Ele está além e não pode ser apreendido como fenômeno, mas apenas como essência”.[1]

A sensação de pertencimento à tradição poética dos seus “poetas do baú do sótão” não produz no poeta a paralisação da escrita, já chamada pelo Vila-Matas de “a escrita bartleby”, ou a “escrita do não” — “Preferiria não escrever”, “I would prefer not to” —, e nem a reverência compulsiva da citação camuflada. Não. O que produz é o desejo de fazer da sua vida o poema, ou fazer do poema a sua vida. Mas este resultado não se alcança de imediato. Antes de tudo, o poeta busca o estranhamento: escreve a palavra, e a palavra afasta a sua própria vida do texto. A palavra primeiramente é o que há de mais distante da vida. Só depois de escrita é que retorna, e o poeta cumpre a sina: escrever o que vive. É apenas assim que o poeta acredita que pode ser possível, num mundo onde tudo parece já ter sido dito, escrever afinal. E é assim que dialoga consigo mesmo:



Folheias

Tudo já dito
Vero
Mas a ti cumpre escrever o que vives

E, ao fazê-lo,
a palavra torna tua vida
um resíduo estranho ao texto

Vives as palavras
como se fosses pensado por elas



Insistamos, ainda um bocadinho, na relação do poeta com “os seus poetas” — uma relação que valoriza uma distinção entre percepção e pressentimento. A poesia, diferentemente do mundo objetal e animal captado pelo olhar do poeta, não está lá se é percebida. A poesia não se percebe. A poesia se pressente; ela é pressentimento [pré-sentimento]. Se é percebida, escapa ao poeta, deixando em seu lugar a “ilusão da sua inexistência” — ou seja, uma vez que se perde, produz a sensação de que não existe. Mas existe. Vai embora e deixa o lugar vazio (e escuro, e silencioso), e o lugar vazio, na poesia de Thomas Albornoz Neves, é sempre lugar prenhe.




Esta noite
no escuro do sótão
a poesia é só sensação do silêncio

Ao ser percebida não está lá

Está enquanto pressentida
logo escapa, se perde,
deixando apenas a ilusão da sua inexistência



O tema da solidão atravessa, como não poderia deixar de ser, todo este Exílio, mas não o tema de uma solidão coletivista, de espécie, que costuma invadir-nos quando postos diante do fato inexorável do Universo e a sua inextensão. Para minorar esta “solidão da raça humana” já se fez e fará muito, e o mais que se fez, o que foi muito, já que se fez disso um paradigma, foi a criação, e a implementação, da idéia de que não se pode separar um fato, qualquer que seja ele, da sua observação. Esta teoria da chamada física quântica, cara à ciência que estuda tanto o macrocosmo das galáxias quanto o microcosmo dos neurônios, revela-se mais cara ainda à poesia, e por outras razões — estas relacionadas à necessidade de que o mundo se mantenha poeticamente observável, o que vale dizer, que mantenha o seu encantamento ao olhar, a sua capacidade de surpreender e em seguida acomodar o olhar. E aqui chegamos ao centro da personalidade de todos os versos deste grande poema quântico e único que é Exílio.



Por momentos

O universo
É só o que parece

Seu próprio encantamento



É assim que este poema me aparece, por mais que o último verso, do modo como está — “Seu próprio encantamento” —, sugira aqui a possibilidade (impossível) de conseguirmos flagrar o universo num momento de, digamos, “intimidade”, em que “ele” está só, “ele” e o seu próprio encantamento, sem nem uma única sombra de observação. Do mesmo modo vibra em mim a estrofe final do poema seguinte, onde diz o poeta: “Em torno / o mundo ocorre / em si mesmo”. Onde o poeta? Onde o olhar do poeta?

E, ao final deste passeio observativo por alguns poemas de Exílio, sinto-me como que oscilando entre duas idéias, que se revelam redemoinhos de sensações. E me sinto arrebatado por ambas. De um lado, a sugestão irresistível que capto de alguns versos: uma espécie de convite a tentarmos imaginar o inimaginável, a conceber o inconcebível — o universo em-si, sem nós; todas as coisas e os fenômenos observáveis, sem a observação; o mundo sendo, sem o olhar. De outro lado, seduzem-me os versos que instauram, e impõem, a presença inegociável deste olhar poeta sobre o mundo — a presença sem a qual o mundo não é, porque somente o olhar é capaz de fazer algo ser algo. Afinal, como dirá a física quântica destes versos: “O universo / É só o que parece”. Parece a quem? A “ele”, universo, diante de um espelho? Não, ao olhar do poeta, à sua mirada.



                                             * * *



[1] Junqueira, Ivan, “Lições do Exílio”, em Reflexos do sol posto, Rocco, Rio de Janeiro, 2014.



J. Batella 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mar Becker

  De Mar Becker sei que nasceu em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e que é gêmea de Marieli Becker. Sua mãe, Meiri, costurava em casa e sua avó, Maria Manoela, foi vítima de uma tragédia não revelada às netas crianças. Que estudou filosofia e hoje mora em São Paulo, na reserva de Guarapiranga, com Domênico, seu marido. Sei que é leitora voraz, que tem bom gosto poético e que é culta, que gosta de cavalos, cães, gatos, Zitarrosa, de música nativista e de Glen Gould. Que toca violão e canta, gauchinha, com voz meiga, quase infantil. Sei outras coisas que, como estas, importam pouco, são letra fria diante do que ela escreve e da forma como escreve os poemas de "A mulher submersa", seu livro de estreia publicado pela editora Urutau.  A primeira impressão de leitura é de que esses poemas foram impelidos por instinto de urgente sobrevivência. Apesar da urgência, há neles lenta maturação e extremo refinamento. A leitura nos deixa quietos, maravilhados muitas vezes, enternecidos e

4 sonetos

Um regente do acaso para Raul Sarasola O encarte da exposição traz o artista empilhando discos de pedra lisa -gravity meditation não dualista- em três fotografias sem camisa (A pilha suspensa em ésse, o desnível, repele a queda mas captura a ameaça Aproxima o possível do impossível alinhando o centro de cada massa) Vem do caos o seu olhar polifacético Raul se entrega ao piche, ao ferro, à tela e, absorto, do escombro tira algo poético Quando plena, a ausência age, rege o acaso A face surge sempre com atraso É o abstrato sumindo que a torna bela Sant’Ana, 19 de junho 2016 Fotos em exibição Há uma série oculta em cada p&b A Chirca, O Miniabismo, O Véu, A Crosta Essa falésia é e não é uma ostra O longe vira perto, o vesgo vê Seria o lírio um pássaro pousado? Onde a sombra muda o ponto de vista outro real, que o filme não registra, some ao passar apenas vislumbrado Um campo, o céu, tão remota a brancura O nanquim de um salso no vento ao fundo O atemporal que entre as rajadas dura E pre

Saudação a Sydney Limeira Sanches, meu amigo

        Amanhecia hoje quando, ainda de olhos fechados, comecei a fazer um exercício de memória. E minha memória é péssima, devo dizer. As lembranças surgem em cenas soltas e passam desconexas.  Pilotis da PUC, Ala Kennedy. Março de 1982. Por acaso, nos encontramos sentados lado a lado na última fileira de cadeiras, Sydney e eu, dois desconhecidos, durante a primeira aula de Introdução ao Direito. E assim, lado a lado, seria durante os cinco anos seguintes, até a formatura. Depois de oito meses morando em Copacabana e sem conhecer ninguém, Sydney foi o primeiro entre os cariocas que me disse:  -Passa lá em casa.            A diferença foi que me deu o endereço.  Sydney é tijucano.            Com a TV na garagem e entre os seus amigos de infância, o Reco, o Dado, o Osvaldo e o Girino, na calçada pintada de verde-amarelo, assisti o primeiro jogo da Copa de 82. Brisa se chamava a cockney spaniel da família. O pai, Dr. Sydney, também advogado, dona Joecy, sua mãe, Shirley e Sheyla, s