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Nota do tradutor de Sol sem imagem. Rodolfo Alonso





                                                                      Gelman e Alonso, em Medellin, 1994


Tive a oportunidade de escutar, ao vivo, da própia boca do autor e em diferentes festivais (Medellín ou Rosário, por exemplo), muitos dos poemas de Thomaz Albornoz Neves quando ainda eram - intuo - em grande medida work in progress, matéria em gestação. (Ainda que, talvez, nem tanto. Período de maturação somente.) Mas o que quero destacar agora é a impressão que isso me causou. Desde uma grande poesia - em geral potente e caudalosa, colorida e vital - como a brasileira, nos chegava uma voz íntima mas quase sideral, imersa em um silêncio enorme, que me parecia tanto o dos amplos espaços estelares como o de uma página em branco, em cujo claustro as poucas e precisas palavras iam caindo, quer dizer, flutuavam vibrando em uma voz tocante, ao mesmo tempo serena e profunda.
Por um mistério a ser decifrado, o que me havia parecido até agora domínio terreno se tornava cósmico, e o mesmo idioma que se havia arriscado até o torrencial se reencontrava com um dos veios da melhor poesia deste século: aquele que retomou a concentração para irradiar, o que buscou aprofundar-se em pouquíssimos termos.
Traduzir poesia para outro idioma diverso, por confraternal que seja, segue sendo utópico para mim. Quando o poema é, quando o poema consegue encarnar-se plenamente no seu dizer, coalha, se torna um ser orgânico de linguagem autônoma, como o fogo em sua chama, toda a tradução é impossível. Mas ao mesmo tempo, desperta a irresistível tentação de pretendê-lo.
Ao fazê-lo, neste caso, tive a enorme ajuda de ter ouvido estes poemas no próprio timbre, na voz mesma do autor. Talvez tudo isso, assim como a sensação de estar agregando algo novo, fresco e fragante, à minha velha devoção de divulgar a melhor poesia em língua brasileira, contribuam a que se considere com benevolência minha audácia nestas lidas, por outro lado ainda (e desde há muito) felizmente irrefreável.

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