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Traduzido do caderno em espanhol. Montevideo. 1998.



I've been freed from the self that pretends to be someone
And in becoming no one, I beguin to live.
T. S. Eliot
.
Observo o que acontece como se acontecesse a outra pessoa, incapaz de deter um só pensamento, incapaz de emergir do meu próprio fluxo, refém de idéias fixas e recorrentes a cada vez que toco na caneta. 

O olho-d'água, o blecaute retraindo no próprio foco a paisagem em um lapso. 

Na aceleração da sensação da existência passo a me sentir o sósia de um estranho. Em galeria.


Observo pensamentos. Me repetem. Obedeço certos padrões de comportamento mental. Uma recorrente linguagem interior reduz meu contexto ao seu alcance. Ela encerra o futuro nas mesmas variantes do passado. E redoma o mundo. 

Escrever – a um só tempo – põe a nu o círculo do raciocínio. O dá a ver sumindo sempre em seu início.

Olhar-me como se nunca me houvesse visto torna tatuagens e cicatrizes sinais de nascença.

Desta ausência de mim que é a minha solidão nasce o impulso de ser quem não se imagina nunca.

Se atento ao mesmo tempo às brasas no fogão à lenha e ao horizonte, sinto o lusco-fusco fluir na penumbra para a correnteza do sol se pondo sobre o oceano. Me sinto ir deixando o peso no balanço da cadeira. Cansado demais para qualquer outra coisa. Sem nada em mente além do fluxo que me leva para longe da tinta nos dedos e deste papel.

O oceano se abisma no escuro. Infinitesimal a outro cosmos. O mesmo sempre. Meu coração sem luz própria.

Abro os olhos para a janela noturna, equidistante do céu constelado e do que sinto. Como se realmente alguém conseguisse postar-se de fora sendo ninguém a um só tempo. Mas tudo, no fim, é pura retórica.
.
Sou um olhar a ver-se vendo e me torno reflexo do que vejo.

A pedra nos ombros fendida por um sopro.

O pensamento também envelhece como um corpo.

Sou alguém que só pode estar onde o pensamento não está. 

Suspenso pela atração lacunar que torna o mundo a mutação da mesma imagem.


Viver testemunhando minha vida como se fosse de outro, no lugar de pensar e sentir simplesmente, incapaz de estar presente no que faço, de estar ausente quando ajo, cria o estado de ninguém em que me encontro.

A palavra escapa justo antes do sentido.

Tento e não consigo lembrar quando comecei a me sentir assim, como se vivesse em presença alheia, deixando de ser um comigo mesmo. É como se eu – o eu inato do qual não recordo –desde algum momento remoto mascarasse alguém que, com o tempo, o absorveu. O pedaço integrou a unidade sem deixar de ser pedaço, fragmentando-a ao fragmentar-se. Com o tempo é agora.

O colapso não é uma válvula de escape através da qual a pressão vaza dissipando consigo a paisagem da minha vida. 

O colapso. Uma pausa latente que mais parece um lugar onde nada ocorre sempre a ponto de ocorrer.

Vida que se volta contra o próprio modo de vivê-la.

A mente em branco, esquecida que esqueceu, toda sorvedouro, fundo de olho d´água.

A entropia narrativa. Amanhã turva ante-ontem.


Penso intuindo, em saltos e em colagens com fendas repelentes, como peças que se atraem mas não se encaixam. 

A única linearidade é a da banda de fundo, do silêncio mental entre os focos de raciocínio. Nesse sentido, meu pensamento é mais poético que prosaico.

Mesmo na vida prática ajo por reação. Às vezes penso em um livro e quando estou diante da estante não sei o que estava fazendo ali.


Aos poucos o torpor volta a ser um corpo e a paisagem um anoitecer.

Não há nenhum processo, nem nada parecido a mim mesmo para onde eu possa dirigir-me. Percebo saltos de entendimento, muito raros, entre recaídas que menosprezam o que quer que eu tenha alcançado.


A sensação de estar no centro de mim mesmo permite viver a solidão não mais como algo ameaçador, mas como minha natureza inata. 

O menino em mim intui essa solidão profundamente. Ele projeta sua vitalidade em tudo que ama. Recordo que ao descobrir o verso, percebi que a poesia era uma forma de canalizar minha intensidade, desdobrá-la e retroalimentá-la.

Talvez o caminho passe pela compaixão para enfocar o instante em outra velocidade, menos vazada por tanto estilhaço mental, anulando a passagem do vácuo pelo presente com a única arma que tenho: a atenção amorosa. E esquecer todo processo anterior ao incorporá-lo. 

Além do corpo e apesar da mente.  Como quem ultrapassa a própria existência e se desloca de si mesmo para a vida mesma. Presente na presença.

 .

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