Pular para o conteúdo principal

Tanger 1 x Casablanca 0


Banco traseiro de um modelo anos 50, um Buik espaçoso. Estofado de couro verde garrafa. O menino púbere, a Mona Lisa septuagenária e a anoréxica adolescente de seios duros, caídos em cuia no tecido branco de sua bata manchada pela nata de colostro. A câmera vai do ombro do motorista, ao para-brisa de vidro grosso, e deste à cadeira de bebê jogada no assoalho do banco da frente. O carro balança como se navegasse. Sulca o calor do deserto com um rastro de poeira terracota, vista em aérea. Já foi feito o que era para ser feito. A venda. Eles retornam disso. Suando, o menino fecha a janela. A velha lhe arregaça a bata amassada, a unha suja subindo pela virilha. Apoia a cabeça em seu colo soltando o coque grisalho. A barra de sol na ponta dos seus cabelos brancos e ressecados ilumina as miríades de pó. O menino consente. Observa sua ereção como se não lhe pertencesse. Escanchada na largura do banco, o viso puído acima dos joelhos, a jovem mãe acomoda-se entre as pernas da velha. Tufo espesso de pentelhos brancos. Desponta o grelho vermelho da velha, descomunal na ponta da língua da adolescente, como aquela foto com o morango. A velha cheira o escroto imberbe e, sugando o próprio o céu da boca retira a dentadura como se fosse um bagaço de laranja (uma tatuagem de arabescos anela os dedos e renda todo o dorso da mão). Depois suspira. Recebe a rala ejaculação. Um jogo de futebol, em árabe, no rádio do carro. Do motorista tudo se ignora, exceto a ponta do cigarro sobre a borda da camiseta de física, a ponta dura e parda da clavícula.


Croquis, autorretrato, Menos que um , J. Brodsky, Rio de Janeiro, 1992.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Mar Becker

  De Mar Becker sei que nasceu em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul, e que é gêmea de Marieli Becker. Sua mãe, Meiri, costurava em casa e sua avó, Maria Manoela, foi vítima de uma tragédia não revelada às netas crianças. Que estudou filosofia e hoje mora em São Paulo, na reserva de Guarapiranga, com Domênico, seu marido. Sei que é leitora voraz, que tem bom gosto poético e que é culta, que gosta de cavalos, cães, gatos, Zitarrosa, de música nativista e de Glen Gould. Que toca violão e canta, gauchinha, com voz meiga, quase infantil. Sei outras coisas que, como estas, importam pouco, são letra fria diante do que ela escreve e da forma como escreve os poemas de "A mulher submersa", seu livro de estreia publicado pela editora Urutau.  A primeira impressão de leitura é de que esses poemas foram impelidos por instinto de urgente sobrevivência. Apesar da urgência, há neles lenta maturação e extremo refinamento. A leitura nos deixa quietos, maravilhados muitas vezes, enternecidos e ...

4 sonetos

Um regente do acaso para Raul Sarasola O encarte da exposição traz o artista empilhando discos de pedra lisa -gravity meditation não dualista- em três fotografias sem camisa (A pilha suspensa em ésse, o desnível, repele a queda mas captura a ameaça Aproxima o possível do impossível alinhando o centro de cada massa) Vem do caos o seu olhar polifacético Raul se entrega ao piche, ao ferro, à tela e, absorto, do escombro tira algo poético Quando plena, a ausência age, rege o acaso A face surge sempre com atraso É o abstrato sumindo que a torna bela Sant’Ana, 19 de junho 2016 Fotos em exibição Há uma série oculta em cada p&b A Chirca, O Miniabismo, O Véu, A Crosta Essa falésia é e não é uma ostra O longe vira perto, o vesgo vê Seria o lírio um pássaro pousado? Onde a sombra muda o ponto de vista outro real, que o filme não registra, some ao passar apenas vislumbrado Um campo, o céu, tão remota a brancura O nanquim de um salso no vento ao fundo O atemporal que entre as rajadas dura E pre...

Saudação a Sydney Limeira Sanches, meu amigo

        Amanhecia hoje quando, ainda de olhos fechados, comecei a fazer um exercício de memória. E minha memória é péssima, devo dizer. As lembranças surgem em cenas soltas e passam desconexas.  Pilotis da PUC, Ala Kennedy. Março de 1982. Por acaso, nos encontramos sentados lado a lado na última fileira de cadeiras, Sydney e eu, dois desconhecidos, durante a primeira aula de Introdução ao Direito. E assim, lado a lado, seria durante os cinco anos seguintes, até a formatura. Depois de oito meses morando em Copacabana e sem conhecer ninguém, Sydney foi o primeiro entre os cariocas que me disse:  -Passa lá em casa.            A diferença foi que me deu o endereço.  Sydney é tijucano.            Com a TV na garagem e entre os seus amigos de infância, o Reco, o Dado, o Osvaldo e o Girino, na calçada pintada de verde-amarelo, assisti o primeiro jogo da Copa de 82. Brisa se chamava a ...